Logo no começo do confinamento imposto pela covid19, sem esperar, recebi via WhatsApp uma mensagem do Roberto dizendo que o irmão, o Renatinho Teixeira, havia lhe passado uma nota pândega, revelando supostos barulhos na madrugada. Fiquei atento, entre curioso e amedrontado. Despertado na noite seguinte, cedíssimo, saí para ouvir a agonia da escuridão. Escutei. Foi o que bastou para retrucar a mensagem. Iluminei a telinha com a notícia “tem um galo em Copacabana, Renato”. Sim, acreditem, um galo entoando forte seu chamamento da luz. Gravei. Gravei, precisei gravar, pois era tamanha a inconformidade que não seria crível sem prova. O corococó me aturdiu de maneira tal que foi capaz de despertar a mais adormecida nostalgia, contraste perfeito de minha empedernida civilidade. E ardeu em mim os anos cariocados.

Continuamos por alguns dias trocando notícias que nos levaram ao território tão nosso, o surrealismo. Foi um pulo chegar a Cartagena das Índias e na viagem flanada remeter a Garcia Marques. Depois, quieto, lembrei-me de um livro do laureado com o Nobel em 1984 “Ninguém escreve ao coronel” e me dei releitura. O enredo implicava um velho militar que,em sua casinha esperava a carta de aposentadoria. Os dias se passavam e nada… O romance versa sobre a espera e o vazio causado pela ausência do filho morto misteriosamente. Tudo sem notícias. A amargura do coronel era repartida pela constância de um galo, presente dado pelo filho ausente. E o protagonismo do galo era metáfora da vigília fiel e da repetição.

Gabriel G Marquez

O colombiano Gabriel Garcia Marquez, o Gabo

Andava perdido nesses delírios quando em outra madrugada Renato constatou “Zé, preste atenção, um galo não canta sozinho. Deve ter outro galo por perto”. Estava dada a senha notívaga: ouvir galos. Passei a ser escutador de ladainhas cacarejadas em catedrais imaginadas. E não é que era verdade?! Identifiquei três. Três galos cariocas, e, em confidências intimas comigo mesmo, recordei versos de João Cabral de Melo Neto. Foi no meio de um desses escuros madrugados que declinei, na lisura da reminiscência melhor, os dizeres “um galo sozinho não tece a manhã/ ele precisará sempre de outros galos/ De um que apanhe esse grito dele/ e o lance a outro”.

Os dias e as madrugadas se sucederam, todas conferidas em cocorocós. Não naturalizei as identificações, de jeito algum. Pelo contrário, repeti ouvidos sempre novos e me entreguei à buscas renovadas: teria mais algum galo? Devo dizer que o correr de meus muitos anos me ensinou a duvidar de acasos. Tudo acontece segundo algum impulso, divino ou diabólico, mas tudo, como a lição dos galos, se fiando enredos que me levaram a uma canção do próprio Renato. O título da cantiga é “Raiz”. Juntei os fatos, emendei ideias, e me permiti uma paródia em diálogo com o amigo encantador: eis o resultado.

O calo da campina

Galo cantou                                           Galo cantou
Madrugada na Campina                     Na madrugada carioca
Manhã menina                                     Manhã rapina
Tá na flor do meu jardim                   Sem flor no meu jardim
Hoje é domingo                                   Hoje choramingo
Me desculpe eu tô sem pressa           A vida que corre depressa
Nem preciso de conversa                   Preciso de conversa
Não há nada prá cumprir                   Pois muito há a redimir
Passar o dia                                           Pagar os dias
Ouvindo o som de uma viola             Sem som de uma viola
Eu quero que o mundo agora            Queria que o mundo agora
Se mostre pros bem-te-vi                   Me mostrasse um bem-te-vi
Mando daqui das bandas                   Bem aqui nestas bandas

Do rural lembranças                          Do rural lembranças
Vibrações da nova hora                     Saudade da nova hora
Pra você que não tá aqui                    De você que não tá aqui

Amanhecer                                           Amanhecer
É uma lição do universo                    Aqui é castigo perverso
Que nos ensina                                    Que pouco ensina
Que é preciso renascer                       E eu preciso renascer
O novo amanhece                               Mas novo não acontece
O novo amanhece                               Pois o novo só anoitece

Já tem rolinha                                      Nem tem galinha
Lá no terreiro varrido                         Nem terreiro varrido
E o orvalho brilha                               O orvalho não brilha
Como pétalas ao sol                            Tudo apagado no farol
Tem uma sombra                                Nem uma sombra
Que caminha pras montanhas          Sem contorno as montanhas
Se espelhando feito alma                   Se encolhendo em minha alma
Por dentro do matagal                        Tudo triste meio letal
E quanto mais                                       E quanto mais
A luz vai invadindo a terra                 A luz vai surgindo na serra
O que a noite não revela                     O vazio mais se revela
O dia mostra pra mim                        O dia sentença do fim
A rádio agora                                        Na alma agora
Tá tocando Rancho Fundo                Tá tocando Rancho Fundo
Somos só eu e mundo                         Somos só eu e o mundo
E tudo começa aqui                             E tudo termina aqui.

Amanhecer                                            Amanhecer carioca
É uma lição do universo                     É um castigo perverso
Que nos ensina                                     Que me ensina
Que é preciso renascer                       Que se deve renascer
O novo amanhece                                Mas o novo não amanhece.

O novo amanhece                                O novo só me envelhece.

 

Dando vida à clássica oposição entre “cidade e campo”, me vi naturalmente convidado a supor o caso do galo carioca. Ainda bem que na solidão carioca um galo me lembrou a eternidade do que fui… Cocorococó…