De repente, juízes, advogados, grupos que defendem os direitos humanos perderam a memória. De repente, ninguém se lembra quem foi o delegado do DOPS Sérgio Fernando Paranhos Fleury, o delegado Fleury. Conveniência pura!

            O julgamento de hoje poderá restabelecer uma lei que nunca deveria ter existido: a execução da pena só poderá ser feita após a sentença ter transitado em julgado. Ou seja, quando estivessem esgotados todos os recursos possíveis.

Resumidamente, de 1941 a 1973, a regra no Brasil era a prisão após a condenação em primeira instância. De 1973 a 2009, vigorou a prisão em segunda instância. De 2009 a 2016, o condenado só poderia ser preso depois da sentença transitada em julgado, ou seja, após a última das últimas instâncias; de 2016 até hoje, voltou-se à norma da execução da pena após a segunda instância. Uma tradição que se alinha com o sistema vigente nas democracias, como se vê em filmes americanos quando o condenado sai do tribunal já algemado, condenado pelo juiz de primeiro grau.

Fleury

Delegado Fleury, do DOPS paulista

Lei Fleury

Sérgio Fernando Paranhos Fleury foi delegado que comandou o DEIC – Departamento Estadual de Investigações Criminais – na capital paulista, onde as confissões eram obtidas depois de muita tortura. Sua equipe na Polícia Civil era conhecida como o Esquadrão da Morte. Exatamente por essas “qualidades” Fleury assumiu o comado do DOPS em 1969. Na noite de 04 de novembro comandou a operação que matou o guerrilheiro Carlos Marighella, na Alameda Casa Branca.

Fleury tornou-se um mito. Enriqueceu. Morreu de 1º de maio de 1979, em Ilhabela, a bordo de seu iate. Uma morte até hoje mal explicada. Queima de arquivo é uma das hipóteses mais viáveis. Nada explica como que depois de cair no mar ao passar de um barco para outro, foi retirado da água e atendido por médico local que nada constatou. Após a saída desse médico, veio a falecer. Imediatamente, Ilhabela foi isolada por forças militares. Sua morte foi classificada como um assunto de segurança nacional.

Helio Bicudo

Hélio Bicudo denunciou Fleury quando era promotor, em 1973

            Antes, porém, em meados de 1970, Fleury foi denunciado pelos promotores de Justiça Hélio Bicudo e Dirceu de Mello, por sua atuação nos chamados esquadrões da morte. Foi condenado juntamente com outros policiais, mas absolvido após a promulgação quase imediata da Lei 5.941, conhecida como “Lei Fleury”, que alterou o Código de Processo Penal e garantiu ao réu primário com bons antecedentes o direito de responder ao processo em liberdade.

Dirceu de Mello

Dirceu de Mello, promotor de Justiça, assinou a denúncia com Bicudo

            Há alguns anos, o ex-delegado do Dops, Cláudio Antônio Guerra, afirmou em entrevista aos autores do livro “Memórias de uma guerra suja” que Fleury foi assassinado, numa queima de arquivo, por ordem de um grupo de militares e policiais.

Claudio Guerra

Cláudio Guerra, ex-delegado do DOPS: queima de arquivo

Silêncio conveniente

A história dessa lei que foi incorporada durante algum tempo à Constituição de 1988 incomoda magistrados e advogados. Pegaria muito mal para essa chamada elite do mundo judiciário ser desmascarada pela defesa que traz na origem nomes como Garrastazu Médici e Sérgio Fleury.

O próprio advogado do ex-presidente Lula, Antônio Mariz de Oliveira, foi um dos que lutaram contra a ditadura. Ele conhece muito bem essa história.

Ao Partido dos Trabalhadores não interessa tornar público que a defesa de seu líder tem como fundamento a lei criada para proteger o símbolo da tortura institucionalizada pela ditadura militar. Curiosamente, em 1973, a imprensa alinhada com o PT saiu batendo bumbo para denunciar que a Lei Fleury estaria sendo usada com o sinal trocado no julgamento de José Dirceu. Visto como símbolo do mensalão, o dirigente petista foi impedido de usufruir dos embargos infringentes que impediriam sua prisão.

Daqui a pouco teremos o resultado do esperado julgamento onde acusados e acusadores se uniram para manter no ostracismo a origem disso tudo: a famigerada Lei Fleury!