Pois é! Entre tanta indignação frente as leituras sobre Lobato, chocado com a escolha desse escritor que deve ser considerado dos mais imaginativos de nossa literatura, fico pensando nos critérios de escolhas para nutrir o cancelamento peremptório sobre ele e sua obra. Quando penso que Lobato foi o grande responsável por abrir a cabeça de gerações que pensavam colonizadas, quando anoto o desrespeito ao mandamento que consagra o autor em seu tempo – e como historiador registro o anacronismo analítico, ou seja, a consideração dos valores de um tempo – fico me perguntando sobre a insistência desta “presentificação” no tempo presente. E assim retomo o meu texto favorito daquela obra para crianças “Memórias da Emília”, publicado em 1936.

Detalho com cuidado o que me faz questionador das passagens escolhidas pelos detratores e então fico imaginando porque não se assume a atualidade de outras passagens que não apenas as que ferem a sensibilidade de segmentos despreparados do movimento negro. Sei que há muita gente lúcida e estudiosa nos movimentos antirracistas, mas insisto em destacar uma questão que merece cuidados: o teor político institucional vazado principalmente nas “Memórias da Emília”? E desdobro a questão buscando entender em que medida esse texto responde ao exame total da obra lobateana dita para criança? A resposta a essa pergunta demanda considerar que ao longo de exatos 80 anos, a obra se mantém atualizada, mas com supressão de partes importantes. Tal constatação convida retomar a primeira edição e uma passagem que foi retirada das edições seguintes. Vejamos a explicação que ela dá ao simpático Anjinho da asa quebrada sobre o termo “discurso”, vejamos:

– que é discurso?

– é uma falação em voz alta, de pé, na tribuna, diante de uma porção de ouvintes. Existe uma casa chamada Congresso, onde uns fabricantes de discursos, chamados deputados e senadores são pagos para falar. Lá dentro tudo é nobre. Só se ouve: “O nobre deputado… O nobre senador…” Mas, quando brigam, a nobreza fica das mais engraçadas porque  só se ouvem coisas assim: “O nobre deputado é um ladrão” ou o “O nobre senador é um canalha!”

– chegam até esse ponto? Exclamou o anjinho assustado.

– se chegam! Não há ponto onde o homem não chegue. Eu leio sempre os jornais e me arregalo com o que se passa no mundo. Que bagunça Anjinho!

– quem dirige os homens na terra?

– eles mesmos. Os mais fortes, ou mais espertos governam os mais fracos, ou mais bobos.

Os espertos estão sempre de cima: e os mais bobos, sempre debaixo. Mas como os expertos abusam demais, muitas vezes os bobos que são em maior número, desesperam e fazem revoluções, botando abaixo os expertos.

– que é revolução?

– é isso. É uma grande multidão de bobos botando abaixo os expertos. Uma espécie de mudanças de moscas. Você já viu como em redor de certas coisas se juntam moscas? Pois é assim. Quando as moscas que estão de fora – as bobas – ficam muitas magras, elas se juntam e fazem uma revolução, isto é, é, espantam as gordas e tomam seu lugar. Mas imediatamente entre as bobas surgem as expertas, que vão fazendo o parigato e botando fora as bobas, para ficarem sozinhas no gostoso.

Mas o que isto tem a ver com a questão da mentira e da ética lobateana? E a resposta é dada pelo próprio enredo. Primeiro, Emília, precoce, se arvora no direito de escrever sua memória. Subverte a tradição que demandava isso ser prerrogativa de velhos. Trai também a moral ao indicar outra pessoa para se dizer; continua quando reinventa as histórias de sua vida se apropriando de supostos alheios; ao surpreender o de supostos alheios; frente a percepção do Visconde, Emília tem um choque de realidade e se assume. A beleza do texto está em aceitar o erro inicial e se repensar. Eis a grande lição. Lição maior, porém, é dizer que se explicará quando for velha e então escrever no tempo adequado suas memórias. Cabe uma última palavra, sobre Dom Quixote. Este é o filtro mais significativo da purificação da Emília. Purificação que implica trocar a mentira pela utopia.

Emília e Dom Quixote

E volto à questão inicial: como e porque não se destaca este Lobato, professor de algo que implica a educação pela literatura? Não seriam iluminados outros ângulos de Lobato? Creio que caberia dar lugar a “presentificações” como esta já que se admite “atualizar” parte de sua obra, não o conjunto.