Márcia Mura, na USP

Vivemos um tempo particularmente difícil, contudo sabe-se que o processo histórico se realiza na superação do vivido. Sempre fomos felizes em algum lugar remoto, sob a garantia de apagamentos das lutas e dores do presente. “Naquele tempo”, como se diz do bom passado, é quimera que troca delícias imaginadas por novidades desafiantes. Se isto é verdade para gente que tem pactos firmados e escritos sobre a vida social – para nós que podemos nos valer de leis, escolas, instituições de assistência geral – o que se diria de segmentos submetidos a mandos interditos e sem espaço para a expressão no universo “civilizado”?

Pensando nestas situações que comportam muita gente, tento traduzir paradoxos que, vistos pelas perspectiva de quem os padece, tornam-se quase ficcionais. Partamos do suposto indígena brasileiro, por exemplo. É imediato notar a subalternidade tóxica que exercemos sobre os primeiros habitantes de nossa “amada mãe gentil”. Não que não soubéssemos disso, mas naturalizamos o preconceito de maneira a torná-lo imperceptível, e assim garantimos ser “programa de índio” algo ruim. Pensando melhor estas questões, resta-nos notar que sem perceber participamos de um cruel apagamento cultural.

Márcia Nunes Maciel, antes de assumir  Mura

É hora de assumir que somos todos preconceituosos e um bom exercício pode ser filtrado pelas análises de nossos comportamentos individuais para com os indígenas. Basta lembrar que sequer o termo “indígena” sabíamos aplicar e que até hoje muitos ainda se referem a eles como “índios”. Nosso sotaque colonizador é refeito no cotidiano das escolas, noticiários, conversas, isto até mesmo quando se tem intenção de “ajudá-los”.

Dói muito pensar que as mais de 200 línguas indígenas que ainda resistem em nosso país estão ameaçadas de extinção. E é preciso distinguir o respeito a elas como patrimônio cultural da necessidade de escutá-las em seus significantes próprios. Incrível como não percebemos o valor dado às línguas estrangeiras e o reverso deprimente em face das nativas. E que dizer das exaltações folclorizadas que temos sobre os primeiros habitantes: o que é o “dia do índio”? Sejamos exatos, quantos indígenas conhecemos? Com quantos interagimos? E qual a qualidade de nossas relações com eles?

O alerta proposto me persegue há tempos, confesso. Como cidadão e sobretudo como professor de história, vejo-me “do lado de cá”, sem muito ter feito pela causa que se perfila entre as mais dramáticas. Houve, contudo, em minha história profissional, um momento especial. Um dia chegou às minhas portas uma moça de Rondônia, de feições claramente indígenas, disposta a estudar seu povo na chave da história oral. De imediato, isto me fez abrir para uma aventura importante e o fiz comovido, em favor do culto à diferença. Admitida, Márcia Nunes Maciel com afinco se dedicou por anos a fio ao trabalho relativo a seu grupo amazonense, os indígenas Mura. E foi muita tenacidade somada: leu o que se lhe recomendava e assim passou pelos teóricos da moda: Foucault, Nora, Boaventura Souza Santos…

Márcia Mura, um símbolo da resistência indígena

O tempo foi passando e soube que Marcia era casada, tinha filhos, marido e que tudo deixou em favor da filtragem acadêmica, importante para habilitá-la a discutir com os “outros”. Cumpriu todos os requisitos e se tornou a primeira doutora indígena formada pelo Departamento de História da USP. Mas ela também mudou e isto vale como atestado de diálogos desejáveis entre as partes. Ao cabo de seu mestrado, já se apresentava como Márcia Mura e desenvolvera técnicas de apreensão de histórias de mulheres de sua comunidade ribeirinha. E que histórias!… De início, vestia-se pelo código europeizado, mas seus brincos “exóticos” foram se compondo com roupas de inspiração étnica e começou exibir pinturas indígenas no corpo, fazer apresentações, e assim foi cativando simpatias. Enfim, Márcia se impôs Mura. Sabe o que aprendi? Aprendi que ela se adaptou, mas nós não. Continuamos conjugando o verbo tolerar, no tempo do egocentrismo colonial.

Doutora formada, Marcia voltou para seu grupo e, mais do que isto, assumiu o posto de professora indígena, na condição de “emergencial”, em uma escola regular. E seu ímpeto guerreiro foi crescendo no limite do inconformado entre o ser indígena e a imposição de um currículo que não a acatava essencialmente. Reativou o uso da língua nativa, centrou-se na tradição dos Muras e pôs a boca no mundo. Sua tese a autorizava fundamentar argumentos não oficializados na ótica “de fora”. Sua indignação virou protesto e seu protesto virou grito em favor da emancipação dos povos indígenas. Impossível compreendê-la fora de um contexto de inconformidades e luta por direitos. E isto tem sido difícil.

Como educar os povos indígenas?

Recentemente, sua incômoda presença mexeu com a ordem estabelecida na escola onde leciona, no Distrito de Nazaré, RO. Insistindo na premissa de valorização do local, no limite da convicção de que deve ensinar os traços culturais nos quais se situa o estabelecimento, de pronto, uma guerra de alternativas foi declarada. É bom que se veja tal contenda como algo nacional, não apenas localizado ou pessoal.

Se for pela lógica das leis, a causa de Márcia está liquidada. Com base nas orientações “de Brasília”, o choque entre direção e comunidade não tem merecido mediações.  Os problemas se misturaram implicando divergências conceituais do tipo “escola indígena” X “escola ribeirinha”, currículo especial X normas estatutárias de base na programação oficial, hierarquia formal. Por lógico, tais dilemas se deram também nas expressões públicas refletidas em exposições didáticas dos alunos, atividades comunitárias da escola e até mesmo o uso das redes sociais e acessibilidade indígena. Certamente, os humores exaltados atuaram implicando temas correlatos como direito de propriedade, posto que Marcia defende ser dos Mura, de sua família, o território da escola.

 

I Encontro do Povo Mura em 2018; fotografado por Márcia Mura

Mais que detalhar meandros da complicada trama, vale destacar que dessa confusão ressaltam valores de culturas que se confrontam e que agora estão no juízo de um tribunal que julga pelas leis dos “brancos”, segundo protocolos não indígenas. O que se aprende com tal postura? Antes de mais nada que é preciso tomar conhecimento do problema e se posicionar. Decorrência imediata do problema, a falta de mediação se apresenta. Mesmo sem advogar a favor (ou contra), cabe reconhecer a luta de Márcia Mura e nela a dos povos indígenas que vociferam sem reconhecimento de suas causas. É hora de provar que vidas indígenas importam. E muito. É hora também de prestar atenção neste caso emblemático que nos exalta a ver além das normas jurídicas. Ouçamos outras Márcias. Ouçamos todas as Márcias Mura deste país e proponhamos um Tribunal de mediações.