Sou do tipo que escreve diários em cadernos, mas reconheço que essa atividade tem se deslocado para as redes sociais, o que resulta distorções exóticas. E mesmo atento aos antigos modelos, não sou constante. Com o tempo – ou com a falta dele – fui me adaptando, dando um jeito de combinar apontamentos pessoais e outras observações de cunho prático.

Pois bem, de quando em vez releio algumas páginas, quase sempre do passado próximo. E foi assim que voltei ao dia 28 de janeiro último. Coincidência, tratava-se do aniversário da morte de um de meus autores favoritos, Antônio Callado, em 1997. Atento, tratei de retomar um de seus romances. Antes, devo dizer que acompanhei a trajetória do então jovem advogado que trocou o empenho jurídico pelo jornalismo. Definitivamente, afeiçoei-me a ele quando juntei para um trabalho de pós-graduação os artigos produzidos entre 1941 e 47, ocasião em que atuou como correspondente brasileiro na BBC de Londres. Foi aquela cobertura da Segunda Guerra que influenciou meus estudos sobre a Guerra Civil Espanhola, capítulo anterior à deflagração do conflito mundial. Daí em diante, acompanhei a obra de Callado com especial atenção, em particular seu diversificado teatro. Foi, contudo, para mim, o livro “Quarup” o texto mais consequente desse autor que, afinal, recobra impacto agora.

“Quarup” é um livro polêmico, situado entre os mais contravertidos da recente literatura brasileira. Há detratores, críticos que não se cansam de maldizer a trama taxando-a de panfletária, tendenciosa e até “antiliteratura”. No caso, o paralelo do escrito publicado em 1967, com acontecimentos irrompidos a partir do segundo governo Vargas – até os desmandos da ditadura cívico-militar de 1964 – era novidade acachapante. Acredito que minha devoção a esse texto rende tributos ao atrevimento, posto que a denúncia de perseguições, torturas e mortes, chocava, sugerindo nova pauta para nossa produção literária.

É justo lembrar também que não poucos são os que exaltam esse romance revelando um enredo adiantado no sentido de questionar a realidade vigente, trançando personagens emblemáticos de nossa conjuntura histórica: padre Nando, representando uma igreja incontida nas posturas tradicionais, expressas num sacerdócio problemático; Francisca, mulher burguesa suscetível a paixões avassaladoras, exibindo um feminino vulnerável e sem lugar na requalificação de um Brasil classista e corrompido; Levindo, um sonhador que morre com seu propósito utópico. A trama, que desveste a sobriedade oficial e mostra a depravação dos costumes, se desenvolve entre as principais cidades do país e a Amazônia. O Xingu, ou melhor, a criação do Parque Nacional que acontecia simultânea ao suicídio de Vargas, serviu de simulacro à falência de projetos colonizadores e desafios de renovação.

Nessa linha, essencial mesmo é aquilatar o sentido da cerimônia indígena “Quarup”: conjunto de atividades ritualísticas organizadas para evocar os mortos e que tinha seu momento maior na luta, huka huka, contenda entre adversários, também indígenas, proposta como disputa de fundo moral, pois o vencedor não deve/pode humilhar o vencido, deixando-o aniquilado no chão. A mensagem é linda. Lindíssima. E ética. Traçando um pálido paralelo entre o enredo do livro e o simbolismo do “Quarup” projetado nos acontecimentos políticos que vivemos agora, em particular com o escândalo golpista do governo Bolsonaro, não resisti tomar como mote aquele contar.

Antônio Calado: “O Brasil não sabe mais o que é um porre feliz”

Quando os inegáveis erros do governo petista ocorreram, correram rios de tintas, e, mais que isso, corrosivos memes arrolando Lula, Dilma e a vasta legião de correlegionários. E ainda que acomodados, foram lances impiedosos, cáusticos, muitos valendo-se do ridículo como artifício destrutivo. Creio que poucas vezes o deboche atingiu satisfação igual. Então… então o tempo passou e novas realidades se mostraram “iguais contrárias”. A mudança, contudo, se fez espelho invertendo imagens. Não há, assim, como deixar de lado a perplexidade absoluta promovida pelo burlesco reverso. Até parece uma daquelas tragédias gregas, onde a vingança se realiza gota-a-gota, até o fim. O que antes era agente promotor das condenações fatais, hoje, plenifica o feitiço contra o feiticeiro.

É quando Callado se refaz sugerindo dignidade na vitória. Abrindo meu coração como convém aos aprendizes da política, assumo como aula magna a mensagem do “Quarup”, e me vejo convidado a exercitar, como nunca, a discrição. E resta assumir tudo como emenda capaz sim de reconhecer e se rejubilar com a virada, mas sem comprometer a celebração como vingança, enfim, sem humilhar os fracassados. Mas, então, qual seria a lógica em não replicar os modos infelizes que pesaram sobre o pretérito? Vendo os acontecimentos com lágrimas enxugadas, sinto que resta clamar por justiça, sim, mas com a mão estendida e pedir que tudo funcione dentro das quatro linhas da Constituição. E que em pé, juntos, consigamos vencer o luto do passado. E que Levindo, o utópico que morreu antes do sonho realizado, ressuscite agora.