Parei para pensar na frase de Artur Azevedo “as revoluções não me metem medo. O que me mete medo é o carnaval”. Vinda que quem foi intransigente abolicionista, escritor respeitado e membro da primeira turma da Academia Brasileira de Letras, não poderia deixar passar. E repeti muitas vezes, “o que me mete medo é o carnaval”. Daí, foi um pulo pensar a questão do negro na “maior festa da identidade nacional”.

Difícil precisar relações entre o negro e o carnaval. Aliás, qualquer vínculo com o carnaval é sempre sujeito a contornos, mas como resistir pitacos em particular quando não mais se duvida da mobilidade na ordem dominante. E, no caso, vale reforçar o papel histórico de alguns sambas de enredo que acabaram por amolecer a solidez das histórias oficiais. Diria que o primeiro ponto a ser abonado remete ao jeito carioca/negro da festa. É claro que não se pode esquecer que foi na década de 1920 que tudo ganhou forma, no Rio de Janeiro, ex-sede do império. Do surgimento remoto à situação atual há uma inegável linha evolutiva que explica mudanças.

Tendo a velha Praça Onze como cenário, um reduto de negros, na maioria filhos de ex-escravos que se reuniam em torno das “casas de reza”, o “povo preto” misturava toques dos atabaques do candomblé com um ritmo permitido fora dos rituais. O Surdo, particularmente o tambor marcando o tempo rítmico dois por quatro, prova a dependência original da tradição afro que até hoje caracteriza as baterias fazendo-as, juntamente com as alas de baianas que rememoram Tia Ciata, a essência das escolas.

Carnaval dos Orixás

É verdade que o carnaval já exista em sua ancestralidade europeia, expresso em cordões, corsos, mascaradas, mas a legítima expressão brasileira se definiu a partir da criação da “Deixa falar”, escola de samba surgida em 1928 no morro do Estácio. Perspicaz, a imprensa logo tratou de cooptar a manifestação vinculando-a ao estado, organizando o primeiro desfile oficial em 1932. Já com enredos, os temas eram voltados à glorificação dos heróis nacionais como Tiradentes, Caxias, Getúlio Vargas.

Demorou até que os negros tivessem protagonismo além da participação, e essa virada se deu em 1948 quando ocorreu a unificação temática celebrando os 60 anos da Abolição da escravatura. Por ordem de classificação aquele concurso apresentou o seguinte resultado: Império Serrano “Homenagem a Castro Alves”; Unidos da Tijuca “Assinatura da Lei Aurea”; Portela “Exaltação à redentora”. Daí em diante, repontaram referências que aos poucos foram deixando o contexto histórico e se especializando em tramas específicos, personagens e fatos relevantes para uma mitologização da epopeia negra.

O primeiro célebre enredo da nova safra foi “Navio Negreiro”, cantado pelos salgueirenses em 1957. Depois, na mesma agremiação, o carnavalesco, Fernando Pamplona, se vocacionou aos assuntos afro e produziu a série temática que logo viralizou “O Negro Na Senzala” (1958), depois “Leilão de Escravos” (1961) e “Valongo” (1976). Outros grupos repontaram: “Magia Africana No Brasil e Seus Mistérios” (1975); “Sublime Pergaminho”, da Unidos de Lucas (1968); “Heróis da Liberdade”, do Império Serrano (1969). O ápice dessa tendência ocorreu em 1988, com o desfile da Vila Isabel em homenagem a “Kizomba, a Festa da Raça”. Colocando-se definitivamente como uma das temáticas mais frequentes do carnaval, naquele mesmo ano em que se retomava a Abolição, a Mangueira levou “100 anos de liberdade, realidade ou ilusão?”.

A ousadia de apresentar uma leitura de Jesus negro

E assim, o múltiplo se fez regra não havendo mais um carnaval sem alusão importante aos negros, e não apenas no Rio. Coroando o processo, este ano temos na Marques de Sapucaí o seguinte plantel obedecendo a ordem dos desfiles: Porto da Pedra com “Lunário Perpétuo: A Profética do Saber Popular” que fala da nossa cultura popular destacando o Caboclo; a Beija-flor com “Um delírio de Carnaval na Maceió de Rás Gonguila” rende homenagem a Zumbi estendendo a saudação às entidades africanas e saberes indígenas do estado alagoano; o Salgueiro com “Hutukara” conta da luta ancestral dos Yanomami; a Grande Rio acentua a questão indígena Tupinambá com o tema “Nosso destino é ser onça”; a Unidos da tijuca traz um samba ambíguo intitulado “O Conto de Fado” usando o negro Orfeu da Conceição como narrador de uma história que deixa perceber as divindades africanas; a Imperatriz leopoldinense vem “Com a sorte virada pra lua, segundo o testamento da cigana Esmeralda” samba-oração em forma de música que é característica da Umbanda; a Padre Miguel explora referências à cultura brasileira com destaque aos povos originários; a Portela com “Um Defeito de Cor” baseia-se no livro de Ana Maria Gonçalves sobre a ancestralidade africana expressa no culto à mãe Mahim; já a Vila Isabel canta “Gbalá: uma viagem ao Templo da Criação”, mito Yorubá sobre a salvação do planeta com apelo a Oxalá; a Mangueira saúda Alcione “A Negra Voz do Amanhã”, contando a trajetória da cantora mangueirense a partir das tradições do Maranhão, em particular de Xangô e Iansã. A Tuiuti traz um enredo histórico a “Glória ao Almirante Negro!”, mostrando João Cândido Felisberto, filho de escravos, personagem que se destacou como líder na luta contra a opressão na Marinha no começo do século passado; e a Viradouro leva o “Arroboboi, Dangbé” para falar do culto à serpente trazido da Costa da Mina.

O que se aprende nessa espécie de epopeia? Muita coisa, mas sobretudo confirma-se o dizer revolucionário de Artur de Azevedo. O carnaval subverte a ordem e, no caso, ao iluminar o “povo negro”, agora dá passagem aos povos originários. E viva a subversão permitida pelo carnaval espetaculoso e sábio.