Para Ana Regina Fagnani

A obra “Machado de Assis Afrodescendente”, de Eduardo Duarte, nos leva a uma questão fundamental: como um homem de aparência frágil, construiu uma das literaturas mais poderosas do Brasil? A resposta está na genialidade que dois apelidos revelam: Machadão e Bruxo do Cosme Velho. Essas alcunhas desvendam as camadas de um escritor que revolucionou nossa forma de ver a sociedade e a nós mesmos.

Nascido em 1839, filho de um pintor de paredes mulato e uma portuguesa lavadeira, Joaquim Maria Machado de Assis desafiava todos os estereótipos do intelectual brasileiro do século XIX. Seus 1,62m de altura, compleição franzina, traços afrodescendentes, epilepsia e gagueira formavam um conjunto que a sociedade da época dificilmente associaria à genialidade literária. Curiosamente, essa mesma sociedade que o discriminava em vida tratou de embranquecer sua imagem após sua morte, em retratos que suavizavam seus traços negros – tentativa flagrante de adequar o maior escritor nacional ao padrão europeizante da elite cultural.

O apelido Machadão surge justamente como contraponto a essa fragilidade física aparente. Seu peso simbólico é inegável: evoca força, impacto, capacidade de corte. A escrita machadiana age como um machado afiado que abre caminho através das hipocrisias sociais. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), revoluciona a literatura brasileira ao colocar um defunto como narrador, criando uma perspectiva única para criticar a sociedade carioca. O romance começa com uma dedicatória irônica “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver”, estabelecendo desde as primeiras linhas o tom cáustico que caracteriza o “Machadão”.

Essa força contundente se manifesta plenamente em Dom Casmurro (1899), onde transforma uma aparente história de ciúme num labirinto narrativo que até hoje divide críticos e leitores sobre a suposta traição de Capitu. Já em Quincas Borba (1891), satiriza tanto as filosofias pretensiosas (através do “Humanitismo”) quanto a ganância da elite cafeeira, mostrando como o “Machadão” podia ser ao mesmo tempo filosófico e socialmente engajado.

Se o “Machadão” representa o impacto brutal da crítica machadiana, o Bruxo do Cosme Velho revela sua dimensão mais sutil e psicológica. A lenda urbana que lhe deu origem – de que queimava cartas em um caldeirão na Rua Cosme Velho – pode ser falsa, mas capta perfeitamente o aspecto mágico de sua literatura. Machado operava transformações alquímicas com as palavras, convertendo o trivial em profundo, o cotidiano em universal.

Esta faceta se manifesta com especial brilho nos contos. Em O Alienista (1882), questiona os limites entre sanidade e loucura, mostrando como a razão pode ser tão arbitrária quanto a desrazão. Em O Espelho (1882), explora a fragilidade da identidade através de um jovem que, ao se ver refletido como alferes, passa a duvidar de seu próprio eu. São narrativas que agem como feitiços literários: depois de lidas, o leitor já não vê o mundo da mesma forma.

A genialidade de Machado está justamente na síntese dessas duas dimensões. Uma frase emblemática de Memórias Póstumas ilustra isso: “A vida é um trem que corre para a estação da morte, mas o importante são os passageiros que vamos encontrando pelo caminho”. Aqui convivem o “Machadão” (a crueza sobre a mortalidade) e o “Bruxo” (a sutileza sobre os encontros humanos). Essa dualidade explica por que sua obra resiste a qualquer tentativa de simplificação.

Mais que um escritor, Machado tornou-se um espelho do Brasil. Seu mulatismo (como definiu Roberto Schwarz) reflete nossa mestiçagem cultural. Sua ambiguidade moral espelha nossas contradições sociais. Seu ceticismo elegante antecipou nosso desencanto moderno.

Hoje, mais de um século após sua morte, Machado de Assis transcende a mera figura de um ícone literário. Ele se estabelece como um símbolo perene de resistência intelectual e humana. A obra que brotou de um corpo frágil, de um mulato gago e epiléptico que a sociedade tentou embranquecer, é um testamento de uma força brutal e de uma magia inigualável. Seus apelidos, Machadão e Bruxo do Cosme Velho, não são apenas carinhosas alcunhas; são a síntese de sua grandeza. Eles celebram o escritor que, com um machado afiado, dissecou as entranhas de um Brasil complexo e, com a sagacidade de um feiticeiro, revelou as verdades ocultas em cada alma. Sentir o Machadão é reconhecer o poder de sua crítica; sentir o Bruxo é mergulhar na profundidade de sua perspicácia. Ambos são a mesma essência de um gênio que, com o feitiço das letras, não apenas mudou a literatura brasileira, mas nos ensinou a olhar mais fundo para nós mesmos.