A doce imprudência das escolhas palpiteiras; o perfume das suposições

As palavras têm histórias, algumas lindas, outras nem tanto, há tristes e engraçadas, espalhafatosas, acanhadas, mas sempre faiscantes em suas andanças. Palavras são como novelas com enredos de amor e ódio, percalços, intrigas, conexões suspeitas, e falsas aparências. Quando acessadas, elas se exibem com vontade de palco e não escondem protagonismos inquietantes. Como seres vivos, nascem, crescem, ganham contornos, e há as que fenecem deixando melancólica saudade: sassaricando, fuzarca, chapuletada. Não nos esqueçamos daquelas espertas que se transformam provocando mudanças de sentido, sugerindo lugares adversos – sob este crivo, aliás, o termo destino é exemplo eloquente, pois nasceu como trajeto de um ponto a objetivo certeiro, algo do tipo tiro ao alvo, mas traidora na prática, deixou-se transformar, fazendo do próprio destino uma possibilidade ou alternativa arriscada. Tudo, porém, acontece num sopro variado entre o surgimento até prisões nos dicionários que lhes são “sentenças paralisantes”, como garantia Garcia Márquez.

Imagino o cultivo das palavras plantadas nas lavouras de etnólogos, semânticos, morfólogos e demais especialistas nos mistérios das línguas. Profissionais dedicados esses, devem habitar uma confraria reclusa a exegetas que, muito exigentes, tratam tudo com solenidade e precisão cirúrgicas. Afora essa corporação, porém, a nós, singelos amadores da língua popular, sobra a leviandade de supor trajetórias contempladas na superfície de dizeres meio soltos, arranhados em pistas vagas, mas excitantes. Ah, a doce imprudência das escolhas palpiteiras; ah, o perfume das suposições!… Certamente isso há de soar heresia aos ortodoxos, mas a nós pecadores do verbo comum é algo divino. E tudo pode virar uma deliciosa aventura. Imaginar as histórias das palavras nos faz um pouco deuses, daqueles que libertam o livre arbítrio e nos deixam sondar o passado de cada vocábulo em perambulações tontas.

E para nós exegetas libertinos há profundezas no raso trato das palavras soltas no cotidiano. Dentre coleções, confesso, uma me chama mais a atenção do que outras mil. Por certo, meu psiquiatra particular terá explicações freudianas para tanto, mas o verbo vagabundear me atrai de maneira irresistível, e, sinceramente, acho que estou bem acompanhado nesta estranha idolatria. Sabe, formulei até trilha sonora a começar por “Abrigo de vagabundo” (Adoniran Barbosa), “Coração vagabundo” (Caetano), “Vai trabalhar vagabundo” (Chico Buarque), e pensam que para por aí, não mesmo, lembremos do “Astro vagabundo” (Moraes Moreira), “O vagabundo” (Leo Magalhães), e nessa ladainha, nem me deixou carente Renato Teixeira se declarando “errante, vagabundo/ assim eu vou vivendo/ na direção que o vento me levar/ desiludi mambembe/ de andarilho e bagual/ sou marinheiro nesse pantanal/ errante vagabundo”. E vagabundeando pelos significados me reencontro com destino, aquele mesmo que se perdeu na trajetória da meta exata. O suspiro desse entendimento, por sua vez, me faz buscar o berço latino do verbo “destinare”. É exatamente na odisseia dada pelo desvio de rota que vagabundear achou-se no direito de virar verbo utópico.

Paul Lafargue, genro de Karl Marx, esconjurado por JC Sebe

Sinceramente, acho pobre filtrar olhares sobre a vagabundagem pelo sentido utilitário do mundo do trabalho industrial. Ser vagabundo é muito mais do que simplesmente não produzir ou perder tempo. Os franceses são mais sensatos nesse sentido, pois na língua de Flaubert vagabundo é mais um estilo de vida do que propriamente não enquadramento em padrões “normais”. Nem é exatamente preguiça ou recusa de execução de tarefas. Confesso pendor leviano para o exame do tema vagabundo sem respeito à sua nobreza original, e até maldigo a sedutora série de livros que concatenam o assunto na ordem burguesa. Esconjuro, por exemplo, a tese para muitos irresistível de Paul Lafargue, genro de Marx, expressa no livro “O direito à preguiça”, e junto disparo contra outros ensaios que pontificam a confusão entre vagabundagem e ócio. E assim engato crítica ao texto “O elogio ao ócio” de Bertrand Russel, e também ao sucesso de “Ócio criativo” de Domenico Masi, todos lidando com a vagabundagem de forma pejorativa. Nessa contramão, aliás, imagino nobreza no verbo vadiar que tem avô latino “vagativum” (lindo, né?!), pura tradução daquele que consciente peregrina sem destino. É aí que o termo vagabundo se encontra com seu sentido cumprindo em um outro destino: ficar sem nada fazer sem culpa, sem compromisso, sem lenço e sem documento, liberto dos deveres prescritos nos contratos de trabalho, sem dever à moral trabalhista ou à economia produtivista. Utopia?

Domenico Masi, autor de “Ócio criativo, lida com a vagabundagem de forma pejorativa

“Destino”, “vagabundear”, “mudança de sentido das palavras”, “consciência da vida”, tudo numa dança de palavras que ritmam a dinâmica da vida moderna… Pois é, ao perder a bússola da orientação, vagabundagem afogou seu lugar romântico, virou quimera, e isso explica esta busca vagabunda do entendimento da sociedade moderna que não tem mais tempo para vagabundear como nos velhos tempos.