Monteiro Lobato: rasgado, queimado, cancelado e imprescindível

Como se o pensamento crítico fosse dispensado ou inalcançável, o Index Librorum Prohibitorum tenta se atualizar em pleno século 21. E a procissão de zeladores é engrossada por religiosos sectários, pais inseguros com filhos alijados da capacidade de discernimento e movimentos de subalternizados que pensando fazer o bem acabam repetindo as práticas que os oneram. Exemplo abrasador dessas manifestações pode ser dimensionado na recente onda contra “O avesso da pele” de Jeferson Tenório. O debate sobre esse sucesso dimensiona o tamanho do problema. Merecedor do Prêmio Jabuti, o livro publicado em 2020 desenrola um enredo que amarra aspectos que denunciam a violência e o racismo contra o segmento negro. Por leituras enviesadas, em vez de se qualificar a mensagem antirracista, vozes distorcidas ecoam como se fossem libelos pornográficos.

Sem dúvida, em termos da prática de censura, estamos dando passos largos para abismos insondáveis. É assustadora a constatação de livros “cancelados”, “recolhidos”, e mesmo “não recomendados”. A lista absurda implica Stephen King, Franz Kafka, Edgard Alan Poe, Harper Lee, autores que se compõem com escritores nacionais do calibre de Machado de Assis, Euclides da Cunha, Carlos Heitor Cony, Jorge Amado, Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Luiz Puntel. Os motivos podem se diferenciar, mas todos se constituem em variações maquiadas de vetos, e não há como escapar: é censura e censura grosseira.

Capa do livro de Jeferson Tenório

As justificativas para tanto se arrastam da Idade Média com estágio na Inquisição, parada dramática na Alemanha de Hitler e ramificações em ditaduras variadas, inclusive no Brasil. Entre nós os percalços se apoiam em dois pilares: raça e sexo, ambos tabus ligados ao controle de corpos e mentes. De tal forma as “suspensões” se insinuam que galgam condição de políticas que, por incoerente que pareça, se trançam tanto à esquerda como à direita. Vigoradas por igrejas, plataformas políticas ou movimentos emancipadores, tais posturas sondam doenças crônicas incrustradas na sensibilidade nacional. E acontecem em nome de saneamentos do mais cínico caráter limitador da liberdade de expressão e do direito à leitura crítica.

São múltiplos os fios que bordam a fantasia proposta para o carnaval supostamente zelador dos bons costumes, da honra e, lógico, da proteção da família tradicional. E então a escola, a igreja, as câmaras municipais, passam a ser arenas para a macabra farra de proibições, tudo, claro, em nome da “boa pedagogia”, da “arte pura” e de supostos “politicamente corretos”. Grupos plurais, ainda que defensores de metas incompatíveis como o pensamento crítico e o antirracismo se aliam em comunhão vigilante e, juntos, acedem a imaginária fogueira das limitações.

Jeferson Tenório: vozes distorcidas ecoam como se fossem libelos pornográficos

Mas há mais a ser comentado, pois limitações aos textos de Lobato têm derivado exatamente do movimento negro, do mesmo movimento que padece, por exemplo, cortes insuportáveis de censura como foi o caso do livro de Conceição Evaristo “Olhos d’água” que teve afastada de suas funções a professora que indicou o livro para leitura. Pois bem, assistimos ao longo de mais de uma década um apedrejamento cadenciado contra a obra de Lobato, escolhido como foco de ataques, exatamente por se situar entre os mais importantes da literatura brasileira. A par da dúvida sobre o critério de escolha, o que se tem é a pecha de racista. E como se a condenação bastasse, esquece-se da vigência de princípios eugênicos comuns à época em que o texto foi produzido. Tecnicamente, chama-se “anacronismo” a atribuição de valores do tempo presente a eventos do passado.

Mas partamos da hipótese de que Lobato foi racista, isto bastaria para proscrevê-lo? Não seria mais inteligente apesentar tais características inscritas em contextos de espaço e tempo? E como seriam virtuosos os debates em torno dessas situações. Melhor retirá-lo de circulação, negando o inacreditável crédito dado a literatura e cultura brasileira como um todo? É cabível iluminar alguns pontos capazes de duvidar do simplismo desse cancelamento: fala-se muito da estirpe elitista de Lobato, neto de visconde, mas pouco ou nada de sua avó, negra e ex escravizada; comenta-se bastante do Lobato editor, mas poucos lembram de seus esforços para publicar Lima Barreto, negro, marginal e louco; e que dizer de seu conto “Negrinha”? A favor da biografia de Lobato convém ter claro que ele foi taxado de comunista, fordista, monarquista, georgista, espírita, ateu, então por que apenas racista?…

Como ler Lobato hoje, eis a grande questão e respostas derrubam investidas – também preconceituosas – de reescrita, correção ou cortes de sua extensa obra. Democraticamente, temos que ler Lobato como e porque ele foi e representa. E discuti-lo como temos que discutir o texto de Jeferson Tenório. Pensemos no avesso da pele de Lobato.  Pensemos no avesso da pele de Tenório e exaltemos o direito da razão crítica, instruída, libertária porque inteligente.