para Isa Márcia

Às vezes fico pensando nas trapaças da vida. Ainda que haja intermitência, isso ocorre sempre em datas redondas ou comemorativas. Vou fazer 80 anos dia 15 próximo o que sugere pretexto para vagar sobre hipóteses mais sutis que práticas, tolas. É evidente que depois de tantas passagens pelo calendário marciano, pude acumular um pequeno repertório de bobagens que nada significam sem uma ajudinha do imaginário. E foi assim que aprendi algumas coisas sobre o tal “meu dia”. Sei por exemplo que o santo que abençoa a data é o famoso e invocado São Longuinho. Sabe, acho apropriado, pois vivo perdendo tudo e não economizo os três pulinhos que convocam o santo achador. Pasmem, dá certo.

Outra ironia é que 15 de março é o “Dia Mundial do Consumidor”. Sei lá por que acertaram esse dia como celebração da gastança. Busquei informações, mas me perdi num paradoxo: em uma ponta dizem que é para ativar o comércio, motivar compras e acertar saldos de mudança de estação, um viva para o consumismo. Acontece que, em outro extremo, reside uma crítica exaltativa dos direitos dos compradores. Fiquei pasmo ao saber que nos grupos CC (compradores compulsivos) há até sessões especiais.

São Longuinho, o santo dos objetos perdidos

Gosto de outra fatalidade delegada ao 15 de março: “Dia da Escola”. Pois é, tanto me afeta essa referência que posso garantir que desde que entrei em um educandário não mais consegui sair. E por certo isso tem a ver com minha escolha profissional, algo tipo bala de prata: sou professor. E o que é mais grave, gosto disso a ponto de garantir que seria menos pleno não houvesse optado pela docência.

Há uma ladainha inteira de referências históricas à “data querida”, e sou bem ligado nas menções antigas, principalmente aquelas atentas à história romana. Uma curiosa, aliás, remete a um ritual, “mamuralia” que aludia cobrir um velho com peles de animais e depois de espancá-lo, enxotá-lo da cidade. Diga-se, isso equivalia a saudar o ano novo em detrimento do ano velho.

Exatamente na mesma linha, a citação mais desconcertante foi assinalada por Shakespeare ao decretar que os “Idos de Março” – atualizado como dia 15 – corresponde ao “pior dia da história” devido o cruel assassinato de Júlio Cezar pelo filho Brutus. Na mesma Roma, diga-se, o dia 15 era o prazo para que devedores pagassem todas suas dívidas, senão seriam passíveis de penas severas. Há outras desventuras projetadas no tempo, como o caso de Joaquim Silvério dos Reis que aos 15 de março de 1789 delatou os companheiros inconfidentes. Se nos aproximamos ainda mais, cabe lembrar da posse de Collor de Mello em 1991 ou da morte de Tim Maia em 1998.

“Até tu, Brutus?”, teria dito Júlio César pro filho

Xeretei sobre acontecimentos exatos do dia do meu nascimento. Morando em Taubaté, a família de minha mãe tinha Guaratinguetá como sede do núcleo parental e foi na casa de meus avós eu vim ao mundo. Grávida minha mãe foi só, de trem, de uma cidade a outra, e meu pai recebeu a notícia por telefone. Meu nome estava escolhido desde há muito: Carlos, mas a proximidade da data celebrativa de São José, protetor da família e do trabalho em marcenaria, fez minha mãe torcer por algum atraso. Ela queria que fosse dia 19, mas, apressadinho, quebrei a expectativa que, contudo, fez valer a promessa de manter o José como pressuposto do Carlos. Virei José Carlos.

Acabou revelando sua faceta carnavalesca

Fui mais longe em minha consulta e aprendi que naquele ano, 1943, o desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro ocorreu dia 7 de março, poucos dias antes de ser parido. Soube que foi um período de controvérsias, pois em agosto do ano anterior o Brasil havia reconhecido o “estado de guerra” e, por motivo de economia e preparo para ingresso nos campos de batalha, a Prefeitura do antigo Distrito Federal havia cancelado o patrocínio. Ainda que as então famosas Sociedade Carnavalescas e os grandes clubes e hotéis houvessem cancelado funções, as Escolas desfilaram garbosamente e a Portela, pelo terceiro ano seguido, venceu com o enredo “Brasil Terra da Liberdade”. Será que isso determinou minha faceta carnavalesca? Será?

Olhando o passado, tentando me inscrever no enredo histórico, fico pensando na beleza do pertencimento e do juízo histórico. Não sei quanto tempo me resta, mas alinhando o passado sinto que ainda há um tempo de celebração. Confesso-me, porém, ante um dilema funesto: será que colocarei minha trajetória entre os fatos positivos ou, reverso cruel, na parcela ruim do dia 15 de março?