Tudo começou quando um amigo questionou o significado de empatia. A discussão bobinha se desdobrou em comentários opinativos. Passado um tempinho, lembrei-me de uma exposição que visitei por acaso, no fim de 2017, no Ibirapuera em São Paulo. Tratava-se de uma experiência provocante endossada pelo “Museu da empatia”, de Londres. A mostra era fundamentada no suposto “só se pode conhecer uma pessoa depois de caminhar por uma milha com o sapato do outro”. Cada visitante deveria escolher um modelo disposto ao público e depois de vesti-lo, caminhar ativando uma gravação que contaria a história do dono. Era incrível ver a reação das pessoas: homens como mulheres; crianças como velhos; ateus como religiosos.

Daquele flash, voei para longe, lembrei-me de um filme encantador “Trocando os pés” onde Adam Sandler, sapateiro em New York, ao vestir os sapatos dos clientes ganhava a vivência do dono, experimentando facetas de sua vida. Muito mais que hilário, o enredo tinha uma mensagem moral instigante. No mesmo impulso, busquei as referências de Freud sobre o gosto obsessivo das mulheres por sapatos. Não precisei muito para imaginar a zanga de feministas que repudiam o “princípio da castração natural” – que no caso tanto ligaria saltos altos à tentativa de alcançar a altura dos homes como à penetração do pé, imitando pênis, em um orifício. De toda forma, mesmo sob a chave do masculino dominador, Freud sustentaria o fetiche pelos sapatos e por aí estão os filmes para provar.

Bata Shoes Museum em Toronto

E outros estímulos curiosos provocaram investigações complementares sobre os sapatos na história. Sem muito esforço me veio à cabeça a visita que fiz ao “Bata Shoes Museum” em Toronto, Canadá. Logo recobrei a sensação iniciada na entrada da fantástica mostra que cobre 4.500 anos de história com peças inacreditáveis. No mesmo impulso reeditei o choque ao ver em alguns “Museus do Holocausto” pilhas de sapatos representando o drama dos mortos em campos de extermínio. Em vista disso, aliás, busquei o poema “Eu vi uma montanha” de Moses Schulstein que reza “nós somos os sapatos, nós somos as últimas testemunhas/ nós somos sapatos de netos e avós, de Praga, Paris e Amsterdã/ e porque não de sangue e de carne, cada um de nós escapou do fogo do inferno”. E de imediato recordei o vazio sentido em Budapeste ao ver as instalações de sapatos velhos, às margens do Danúbio, aludindo os judeus desaparecidos.

Mas como nem só de tristezas é composta a representação dos sapatos na cultura, retracei casos comuns no cinema. A velha historieta italiana “la gatta cenerentola” serviu, por exemplo, como retomadas dos “sapatinhos de cristal” no começo da indústria cinematográfica – a primeira versão de Cinderela, francesa, foi de 1899. Em sequências esporádicas, a mais conhecida foi a de 1950, dos estúdios Disney. Antes, porém, um outro clássico hollywoodiano havia proposto o mito dos sapatos magos, “O mágico de Oz”, de 1939, que permitiu à menina Dorothy voltar para casa; o mesmo efeito/sorte pode ser medido nas versões do “Gato de botas” ou de “Uma bela mulher”. Mas os calçados cinematográficos não pararam aí. São muitos os exemplos, sendo que o mais recente é registrado no seriado “Sex And The City”, no qual a personagem central gasta US$ 500 em um par da grife Manolo Blahnik, dos mais famosos da atualidade.

Imelda Marcos, primeira-dama das Filipinas: mais de mil pares de sapato

Nenhuma conversa sobre sapatos e manias pode deixar de lado a excentricidade de Imelda Marcus, primeira-dama da Filipinas, conhecida como “borboleta de ferro”, personalidade que se tornou mundialmente reconhecida como a maior colecionadora de sapatos da história. Sua mania virou atração pública, passando a marca dos 3 mil pares. Outros pops stars como Sammy Davis Jr. Michael Jackson, Elizabeth Taylor e Lady Di, foram devotos de sapatos, condição que atesta, inclusive, a vasta indústria de calçados, da qual o Brasil se destaca perdendo primazia apenas para a China, Índia, Vietnã.

De verdade, acredito que, mais que nada, a reputação do sapato advém de certa insistência projetada no imaginário universal. Confirmemos com frases: Felicidade é um coração cheio de amor e um armário cheio de sapatos; Ministério da saúde adverte: a falta de sapatos novos deprime; A vida é feita de altos e baixos; um dia o salto é 15, no outro é sapatilha; Desilusão amorosa é se apaixonar por um sapato que não tem seu número; Quem disse que dinheiro não compra felicidade não conhece sapatos; Se não encontrar o amor que busca, pode ter sorte e encontrar outro par (de sapatos); Chocolate é bom, mas sapatos tem zero calorias; Chute o traste que te atazana com um belo par de sapatos.

Sapatos de vítimas de Alschwitz

Tudo começou com a busca de entendimento da relação com o outro. Caminhei por uma estrada cheia de meandros, gastando sola em volteios que se emendariam numa apologia ao sapato. Espero não ter causado demasiada calosidade, pois caso contrário, resta propor um retorno que, afinal, remete à empatia: coloque-se no meu lugar, vista os meus sapatos.