Coletivos feministas realizam manifestações; a maioria dos crimes é de autoria familiar; na terra de Lobato, grupo vinculado à Unitau presta atendimento gratuito às vítimas de violência sexual

Está de noite. Você acabou de sair do trabalho e está voltando pra casa a pé e sozinha. Você precisava terminar uma planilha que o chefe usaria na reunião na manhã do outro dia e, por isso, ficou além do horário no escritório. Por ser muito mais tarde do que o habitual, as casas já estão trancadas e a maioria com as luzes apagadas. Não tem ninguém na rua, exceto um grupo de homens conversando e rindo na frente de um portão de uma residência. Um deles está dentro de um carro com as portas abertas. Você aumenta a velocidade dos passos e troca de calçada para colocar mais distância do grupo. Você mantém o olhar pra frente para evitar chamar atenção. A cada passo parece que as risadas estão mais próximas e o grito já está preso na garganta até que você chega ao fim da rua e fica aliviada que nada aconteceu”.

O caso relatado acima é fictício, mas não está distante da realidade. Ele retrata o medo que muitas mulheres têm diariamente. De acordo com uma pesquisa divulgada no dia 20 de maio pela Organização Internacional de Combate a Pobreza ActionAid, 50% das 503 mulheres brasileiras entrevistadas, já foram seguidas nas ruas e 86% delas já sofreram alguma forma de assédio em locais públicos.

É preciso muita coragem para enfrentar a cultura machista dominante

Dia de luta

Na quarta-feira, 01 de junho, diversas cidades do Brasil promoveram atos contra a cultura do estupro, inclusive em Taubaté, onde cerca de 130 pessoas participaram da Marcha das Flores. O protesto foi organizado pelos coletivos feministas Maria, vem com as outras e Maria Lacerda de Moura.

Por volta das 17h:30, apesar da chuva que ameaçava cair a qualquer momento, os manifestantes se encontraram na Praça Dom Epaminondas, da Catedral, onde cantaram músicas de empoderamento feminino e contra ao estupro. Algumas das jovens levavam cartazes, velas e flores. “Nós falamos quais são as nossas frustrações, as nossas reivindicações e tentamos passar isso para frente; levantar esses questionamentos para quem está passando aqui por perto para que pense e leve isso pra casa”, explica Gabriella Fieschi, uma das organizadoras do ato, membro do Coletivo Feminista Maria Lacerda de Moura.

Na Praça, foram realizadas apresentações condenando a culpabilização da vítima em casos de assédio sexual e acesas as velas como representação e resistência ao machismo predominante na sociedade. Em seguida, as manifestantes caminharam pelas principais ruas do Centro até chegarem à Rua Nove de Julho, onde continuaram o protesto.

Manifestações como essa que foram realizadas em diversas outras cidades do país tiveram origem no Rio de Janeiro na semana passada depois que uma adolescente de 16 anos foi estuprada por cerca de 30 homens. “Nós todas nos comovemos com o que aconteceu no Rio e, por isso, nos mobilizamos com os coletivos da cidade para fazermos esse ato”, afirma Gabriella.

Mesmo com a noite chuvosa e senhoras idosas que reclamavam das manifestantes, as feministas não arredaram o pé e caminharam depois até a praça Santa Terezinha 

Estatísticas pesadas

Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP), entre Janeiro e Abril deste ano já foram contabilizados 16 casos de estupro em Taubaté. Em todo o Vale do Paraíba já foram registradas 209 ocorrências. Na terça-feira, 31, uma advogada de São José dos Campos foi violentada por um homem. A mulher saía do trabalho para almoçar quando foi abordada pelo criminoso que a forçou a dirigir até um local afastado na cidade, onde cometeu o crime. A advogada registrou o BO na Delegacia da Mulher, mas o homem ainda não foi encontrado.

Apesar da estatística da SSP, o número não representa a quantidade real de casos devido ao medo da vítima em registrar a violência. “A pessoa adulta [tem medo] porque normalmente é ameaçada de morte. Ela não se sente segura em ir até a delegacia e registrar a ocorrência”, explica o advogado Avelino Alves Júnior. “Já [em relação] às crianças, o motivo é porque elas são desacreditadas pelos próprios pais que preferem acreditar no padrasto, no tio ou em quem quer que tenha cometido o crime”.

Para a feminista Gabriella Fieschi, a abordagem nas delegacias também é um fato que amedronta as vítimas. “As delegacias estão muito sucateadas e muitas vezes são homens que fazem o atendimento. Não dá para julgar a vítima por não se sentir a vontade em falar com um homem sobre isso”, destaca. “Conheço histórias de vítimas que foram até a delegacia e o delegado ficava questionando qual roupa ela usava e se ela estava bêbada. Totalmente constrangedor. E ela tem que reviver mil vezes a dor do estupro quando vai fazer o BO”, ressalta Gabriella.

Discursos, cantos e palavras de ordem contra o machismo marcaram a manifestação

Apoio

Avelino Alves Júnior é consultor jurídico do Gavvis, Grupo de Atendimento à Vítima de Violência Sexual, vinculado à Pró-reitoria de Extensão e Relações Comunitárias da Universidade de Taubaté. O grupo conta com profissionais de Medicina, de Enfermagem, de Psicologia e de Direito e atende pacientes encaminhados pelo Pronto Socorro, delegacias ou que chegam diretamente ao Gavvis.

As consultas são realizadas no Hospital Universitário todas as segundas-feiras e são realizados exames laboratoriais para identificação de doenças sexualmente transmissíveis, tratamento psicológico pré e pós-traumático e aconselhamento jurídico. Todas as ações realizadas pelo Gavvis são gratuitas.

De acordo com o advogado, o Gavvis atualmente atende cinco pacientes por semana, das quais três são crianças. “A maioria dos casos que chegam até a gente são crianças com menos de 12 anos de idade”, destaca Avelino. A maioria dos casos de violência sexual que chegam até o grupo é de casos que aconteceram dentro da casa da vítima. O crime normalmente é praticado pelo pai, padrasto ou marido. “Na maioria dos casos, o crime foi cometido pelos próprios familiares da vítima”, conclui o consultor jurídico.