Sim, pode parecer estranho, mas há pessoas que sentem perturbações incontroláveis frente a expressões de extrema beleza, em particular ante a obras de arte, monumentos, sítios históricos ou naturais, peças e lugares únicos. A noção de culto ou reverência consagrada funciona como espécie de memória ou depósito de referências que postas à prova atestam o melhor da civilização. E isto não é tão raro como possa parecer à primeira impressão, visto que essas ocorrências têm até registros célebres dos quais o seminal remete ao escritor francês Stendhal que, aliás, emprestou seu nome ao fenômeno: “síndrome de Stendhal”.

Em notável livro escrito em 1817, Nápoles e Florença: uma viagem de Milão a Reggio, o autor relatou o próprio estado de transcendência sentido ao ver os afrescos de Giotto, pintados no teto da Basílica de Santa Croce, em Florença. Vale a pena retomar a descrição de Stendhal ao dizer que sentiu “palpitações desordenadas” motivadas pela “formosura da imagem puxada em azul”. Sem ter claro o que se passava, com emoções incontidas, descreveu padecer naquele instante de “estremecimentos no corpo, o que em Berlim chamam de ‘nervos abalados’”.

Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal, emprestou seu nome à síndrome

Por lógico, o tal deslumbramento não ocorre só em Florença e nem afeta apenas observadores famosos. Com o tempo, essa emoção se amiudou socialmente ganhando constância, carreando carga de preocupações comportamentais. Qualquer ser humano de sensibilidade fora do que se considera normal pode ser acometido desses enlevos, bastando que tenha melindres orientados para um tipo de percepção sobre o bom gosto consagrado. A exposição contemplativa em face de situações únicas provoca um circuito de identificação sensível, capaz de inverter os limites de cotidianos pouco entusiasmantes.

Há, sem dúvida, um fator que potencializa possibilidades: o contato direto com os estímulos que catalisam experiências artísticas exemplares. O teórico Walter Benjamin qualifica essas exposições com a palavra “aura”, ou seja, o impacto deslumbrado produzido pela relação direta, pessoal, com a obra de arte ou com situação relevante. A “circunstância aurática” é então potencializada em algumas pessoas que podem ter reações surpreendentes como ficar paralisadas, ter crises de choro, perder a noção de espaço ou tempo, e desmaiar em certos casos.

Desde o crescimento do turismo no mundo moderno, em particular da segunda metade do século passado em diante, tem havido significativo registros desses casos, fato que preocupa responsáveis por exposições e mostras de arte, giros por lugares históricos ou religiosos. Além dos contatos com peças exemplares e ambientes privilegiados, o cansaço natural de roteiros rápidos e o ritmo imprimido pelos programas exaustivos justificam esses acometimentos. De tal forma essas manifestações têm se repetido que há um novo campo da psiquiatria que passa a cuidar do assunto. Em 1979, na Itália, Graziella Magherini descreveu o fenômeno definindo sintomas relacionados a atordoamentos, taquicardia, palpitações que chegam a comprometer a consciência da pessoa que, em certos casos, perdem o equilíbrio, entram em pânico. A duração do fenômeno também é detalhe cuidado, pois há casos de demora na retomada da normalidade.

Capa do livro de Graziella Magherini

A relação humana com a beleza merece ser considerada em complexidades que vão além da objetividade razoável. Há dimensões ainda pouco sondadas que implicam, por exemplo, a noção de sublime e a consciência da racionalidade. O próprio Stendhal declarou que o contato que teve continha algo de “celestial”, mas convém supor que o termo “sublime” quase sempre é vulgarmente considerado no superlativo positivo. Segundo Kant, porém, o medo pode conter nível de beleza eletrizante. Cabe, no entanto, imaginar que o maravilhoso provoca inclusive distúrbios amedrontadores. Sabe-se, por exemplo, que seus efeitos despertam o que tecnicamente é conhecido como “choque iconoclasta” e inclusive leva pessoas a destruição de objetos cultuados. Isso se dá em diferentes campos, seja ante objetos de arte ou peças religiosas (sempre presente na memória brasileira a tentativa impetrada por um fanático que, em 1978 tentou roubar a imagem de Nossa Senhora de Aparecida). São incontáveis os ataques feitos quadros e estátuas famosas, mundo afora.

Em situações que se multiplicam não é raro encontrar relatos de pessoas que ante a escultura de Davi de Michelangelo se imobilizam atônitas; outros choram ao ouvir a Nona Sinfonia de Beethoven; já vi pessoas se ajoelharem no Museu do Prado frente a tela do Cristo Crucificado de Velásquez. E quantos relatos há de delírio ao se deparar com o Monte Fugi, ou no Rio de Janeiro, com as expressões do contorno do Bondinho do Corcovado na nominada Curva do Ó. Vitrais são espelhos mágicos para apreciadores e nesse quesito os da Notre Dame de Paris competem com os da Mesquita Nasir Al-Mulk de Shiraz no Irã.

Na contramão desses deslumbres também tem crescido a “cultura dos simulacros”, ou seja, o exagero de reproduções baratas de “obras raras”, fato que resulta no que Baudrillard chama de simulacros. Supondo a Síndrome de Standhal, no entanto, o efeito fica ainda maior quando o contraste se evidencia de maneira a produzir maior choque.

Há estudos recentes afeitos aos acessos a obras de museus e passeios variados pela internet e a questão que se coloca é sobre a sensibilidade na era das máquinas. Quais serão as escolhas que faremos na relação com o extraordinário? Terão vigor os estudos sobre “Síndrome de Stendhal”, ou a arte perderá a força de culto?