Lobato precisava se justificar publicamente, mostrando sempre lógica e argumentos coerentes com ideias em voga

Sou daqueles que consideram cartas janelas abertas que permitem ventilar a intimidade de seus signatários, privilégio assim a correspondência pessoal, bilhetes, mensagens, enfim, linhas traçadas sob o crivo de confidências comezinhas. E valorizo textos diversos de manifestos públicos, informes oficiais ou mesmo missivas lustradas por retoques maquiadores de espontaneidade. E nessa seara, não há como escapar de Monteiro Lobato, um dos mais celebrados de nossa tradição epistolar.

A par das 340 cartas e dois bilhetes que compõem a “Barca de Gleyre”, missivas que ao longo de mais de 40 anos trocou com seu amigo Godofredo Rangel, Lobato exercitou como poucos essa prática, aliás comum à época. A reputação exaltativa e recentemente polêmicas que o acusam de racista, misógino, elitista, sugerem visitas a textos produzidos fora dos parâmetros da literatura ou da crítica publicada. Como se as cartas não mentissem, nelas há quem encontre fundamentos para uma discussão menos rebuscada e mais reveladora da personalidade do autor do Sítio do Picapau Amarelo.

A montanha de papéis resultante de investidas ao subterrâneo do missivista Lobato revela muito mais do que se vê na superfície daquele super-homem que precisava se justificar publicamente, mostrando sempre lógica e argumentos coerentes com ideias em voga. Neste sentido, e para provocar reflexões, vale destacar as sutilezas das cartas miúdas que contrastam como muitas outras algumas do quilate dado a do ditador Getúlio Vargas que, aliás, se valeu exatamente de uma para prendê-lo. Interessa agora considerar as cartas “leves”, anotações, onde o cotidiano e a delicadeza deixam esparramar a essência do que sentia.

A cordialidade de Sérgio Buarque de Holanda iluminava uma condição assumida pela elite brasileira

Não há dúvida que o sucesso em vida fez de Lobato ângulo convergente, dono de centralidade incontestável, buscado por muitos, em particular por autores que almejavam sua opinião a fim de promover a própria produção. E quantos são os textos que lhe chegavam demandando opinião, solicitando pareceres ou mesmo apenas para presenteá-lo. Esse, diga-se, esse foi o caso de Sérgio Buarque de Holanda, o grande mistificador da imagem do “brasileiro cordial”. E cordialidade é o que se vê numa breve carta/bilhete de Lobato em 1944. Na ocasião, agradecia o envio da coletânea de 146 artigos publicados sobre o título “A cobra de vidro”. O livro do já então consagrado autor de “Raízes do Brasil” era um apanhado de análises cabíveis como crítica literária, prática, aliás. fervorosamente exercida tanto pelo historiador como por Lobato.

O bilhete de poucas linhas cumpria a função de agradecimento e desculpa pela demora na resposta e assim apelava para reencontro pessoal sempre adiado. Sobretudo, porém, tendo em vista o breve conteúdo dos dizeres de Lobato, vale destacar a menção feita a Machado de Assis, vazada nos seguintes termos:

“Excelente a contra-crítica do Machado de Assis. Ah se aquele negro ressuscitasse e viesse ler tudo quanto se tem escrito sobre ele, e inda visse que monetariamente só vale 500 reis”.

Sim, a citação é passageira, mas aberta às reflexões das quais vale destacar “se aquele negro ressuscitasse”. Na mesma medida, e para alargar a discussão, cabe recortar outra passagem atenta à cor de Machado de Assis, dessa feita extraída de carta escrita em 1941, para a iniciante Regina Moreira, filha de seu amado amigo Lineu Moreira. Vejamos:

“E espantei-me de como esse escritor começou bestamente em seus primeiros romances; e como foi ascendendo, como foi se desmulatando, como ficou maravilhoso nos contos da maturidade”.

“Machado de Assis. Ah se aquele negro ressuscitasse … e inda visse que monetariamente só vale 500 reis”

Nas duas passagens o destaque racista permite confirmar que, sim, Lobato era preconceituoso, racista, como aliás grandíssima parte da sociedade naquela época. Não cabe, contudo, julgar pelo olhar de hoje o que era valor comum, estrutural, racista pela ótica daquele tempo. Confirmando o caráter racialista, pois, cabe crer que Lobato referendava conceitos classistas filtrados pela qualidade literária, que seria uma espécie de purificação da condição genética superior, branca. Estabelecido tal pressuposto, vendo com o olhar do tempo em que o texto foi enunciado, o que temos é o reconhecimento da ascensão social por meio das letras. E isto explica a devoção de Lobato à educação, à escola em geral, e ao uso da literatura como recurso educativo. Civilizatório e possível. Machado, nesse sentido, seria precursor.

Levando-se em conta essa carta/bilhete, há algo mais a ser notado. Sérgio Buarque era nitidamente contra o determinismo racial e agudo crítico de Alfred Rosemberg, formulador das teorias sobre a superioridade genética. Certamente, o impacto de uma obra sobre a outra trançava opiniões contrárias. A cordialidade de Sérgio Buarque de Holanda, no entanto, iluminava uma condição assumida pela elite brasileira – o “homem cordial” – e Lobato seria a encarnação disso. Para Lobato, Sérgio Buarque era um jovem promissor, dono de propostas aberta ao diálogo… Eram sim posições contrárias, mas confrontadas com a grandiosidade de quantos dialogam em favor do entendimento de um Brasil que se busca entender.