Falar do que, se todo mundo ainda só pensa em Olimpíada? De vez em quando, tento me lembrar de onde estou, para onde vou, como estão as coisas em volta de mim. Me horrorizo com a foto de Omran Daqneesh, o silencioso menino ensanguentado pela guerra boçal na Síria; lembro que já vimos uma outra versão trágica de situação semelhante, na foto de Aylan Kurdi, outro sírio de 3 anos de idade, encontrado morto por afogamento numa praia da Turquia, longe de sua família de refugiados, provavelmente também afogada na fuga. Para não falar de Dilma, Temer, Cunha, todos aqueles que fizeram de nossas noites desses últimos anos insônia e pesadelo.

Mas confesso que, durante esses dias recentes, dei um tempo na lembrança amarga da miséria e da desigualdade, da falta de hospitais e de escolas, do desemprego e da inflação, da merda em que vamos nos tornando. Esqueço a vontade de explicar que já houve muita esperança em manhãs que cantam, em dias melhores que haveriam de vir. Entre uma braçada e um salto, imagino que estou sendo vítima daquilo que em nossa juventude chamávamos de alienação. E se o termo saiu de moda, o fenômeno a que ele se referia continua vivo. Pois a Olimpíada no Rio foi uma saudável alienação.

 Omran Daqneesh, o silencioso menino ensanguentado pela guerra boçal na Síria

Durante os Jogos, reaprendemos a torcer sem odiar, recuperamos o gosto pela natural competição entre seres humanos sem a necessidade de um acabar com a existência do outro, saudamos os campeões justos e lamentamos as mentiras noturnas de nadadores e diurnas de autoridades. Descobrimos novos ídolos, com quem aprendemos a sorrir, dançar e desejar sermos raio; deploramos a injustiça do pênalti perdido, nos excitamos com o reencontro que nos permitiria a redenção de nosso maior fracasso (ao escrever esse texto, ainda não sei o resultado da final de sábado). Tivemos, enfim, o direito à alegria e à festa sem culpa, mesmo que ambas durassem apenas umas duas semanas. Foi bom estar no mundo.

Agora, está na hora de acordar da paz esportiva, solidária e festiva. Cada um pro seu lado, retomaremos a dor cotidiana da frustração, apagaremos os sorrisos inconsequentes à beira das quadras, só nos restará torcer por nossa própria alma triste, deplorar a nossa ausência de recordes humanos na sociedade. Voltaremos à depressão entre interinos e afastados, entre os que nos acusavam de alienação e os que pedem nossa obediência, entre os inconciliáveis. E, então, lembraremos com saudade que as tochas não tinham partido.

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Assim como não entendo a necessidade de atletas treinados nas Forças Armadas baterem continência no pódio, não concordo com sua demonização por serem ali preparados. Provocados pelos Jogos Mundiais Militares de 2011, realizados no Rio de Janeiro, Exército, Marinha e Aeronáutica decidiram assumir a preparação de atletas em suas instituições, dando-lhes patentes militares e salários convenientes para que pudessem se dedicar a um bom resultado esportivo. Deu nas 114 medalhas naqueles Jogos de 2011, sendo 45 de ouro. E, agora, na liderança dos resultados brasileiros nessa Olimpíada.

Thiago Braz faz continência ao receber o Ouro na Rio 2016

Rafaela Silva, Thiago Braz, Rafael “Baby” Silva, Robson Conceição, a dupla de meninas da vela, essas medalhas de ouro e outras de prata ou bronze foram conquistadas por atletas beneficiados por aquele programa. É claro que não deviam militarizar a disputa batendo continências indevidas; mas as Forças Armadas estão, com a preparação deles, dando um exemplo a outras instituições nacionais que podiam fazer o mesmo. Se queremos, de fato, ser um grande país, o sucesso no esporte há de ajudar muito.

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Podemos comemorar o fato de que, num país de superfaturamentos e propinas a granel, a Olimpíada do Rio tenha custado 4,6 bilhões de dólares de dinheiro público e privado, contra os 15 bilhões de dólares de sua edição anterior, em Londres. Mas o que vai acontecer agora com o Boulevard Olímpico e a Zona Portuária da cidade? Desde o Aterro do Flamengo que o Rio não conhece uma intervenção urbana tão bem-sucedida.

Imagino o que pode acontecer de bom com outros investimentos olímpicos, como arenas, vilas, parques, estádios, que deveriam vir a ser ocupados pela população, como habitação ou espaço de lazer. Mas o sistema de mobilidade urbana e a recuperação da zona do porto precisam ser garantidos e ampliados pelos administradores do presente e do futuro, como os dois principais triunfos brasileiros nesses Jogos. Esse legado nós não podemos perder.

Cacá Diegues é cineasta / carlosdiegues2015@gmail.com