“Basta quer dizer basta! Este país e nosso governo pertencem a todos, e não a um punhado de bilionários! ” Com estas palavras, Bernie Sanders rompe com os padrões bem-comportados da política e entusiasma aliados e simpatizantes. O candidato vai direto aos pontos essenciais: “Não representamos os interesses de Wall Street e das grandes corporações, nem queremos o dinheiro deles. O povo americano está dizendo não a uma economia baseada na fraude. Vamos criar uma economia que funcione para as famílias que trabalham, e não para os bilionários”.

Sanders formula propostas concretas: sistemas de saúde e de educação gratuitos, financiados por taxações às grandes fortunas, à especulação financeira e às heranças. Regulamentação do sistema bancário, quebrando os mamutes financeiros em proveito de pequenas instituições que se dediquemao sistema produtivo e não a especular com papéis sem lastro na economia real. “Se um banco é muito grande para falir”, gosta de dizer, “também é muito grande para existir”. Para deslanchar a economia, um plano de investimentos públicos, no valor de 1 trilhão de dólares, gerando cerca de 5 milhões de novos empregos em cinco anos. Reajuste substantivo do salário mínimo federal, que passaria dos atuais $7,25 para $15 dólares/hora.Legalização dos imigrantes que já entraram e nada de muros entre os EUA e os vizinhos. Impostos sobre as emissões de carbono e estímulos às tecnologias baseadas em energias limpas. Na política externa, parcerias internacionais, em vez dos EUA como “polícia do mundo”.

O candidato condena a promiscuidade obscena entre políticos e empresas autorizada pela Suprema Corte, mas que falseia a democracia. Não aceita doações empresariais e sua campanha registrauma contribuição média de $27. Na vida pessoal, Sanders multiplica gestos simbólicos, como viajar de avião como um cidadão comum, em classe econômica, fazendo recordar os hábitos modestos de José Mujica, ex-presidente do Uruguai.

Palavras e promessas surpreendentes.

Mais surpreendentes têm sido os resultados. Nas três eleições primáriasrealizadas, nos Estados de Iowa (virtual empate, com pequena vantagempara a Sra. Clinton, 49,8% X 49,6%), New Hampshire (vitória folgada de Sanders – 60% X 38%) e Nevada (nova vitória apertada de Clinton: 52,6% X 47,3%), a animação dos partidários de Sanders aguentou bem o tranco da milionária campanha da adversária.

O que o “fenômeno” Sanders evidencia é o desgaste da hegemonia do capital financeiro e a descrença no “establishment” político. Segundo pesquisas recentes, o candidato alternativo, entre os eleitores democratas de 17-24 anos, tem 86% das intenções voto. Na faixa entre 25-29 anos, dispõe de 81%. Retém a maioria também na faixa de 30-39 anos (65%). Entre os quarentões, Hillary inverte a tendência, mas ganha por magros 5% e só ampliaa vantagem entre os maiores de cinquenta anos, onde distancia Sanders com mais de 20 pontos. Como registra John Cassidy,com este tipo de apoio, é difícil Hillary apresentar-se como a “voz do futuro”.

Thomas Picketty sublinhou que Sanders retoma uma tradição inaugurada nos anos 1930, para lidar com uma outra crise provocada também pela sanha da especulação financeira. Assim, entre os anos 1930 e 1970, os EUA teriam empreendido uma “ambiciosa política de redução das desigualdades”, baseada num imposto “fortemente progressivo sobre as rendas e as heranças”. No período, o salário mínimo federal atingiu $11/hora e os impostos sobre as grandes fortunas e as heranças alcançaram picos entre 70 a 82% e estavam nestes patamares, quando R. Reagan assumiu a presidência, em 1980, e começou a revogar estas políticas. Resultados? Explosão das desigualdades, remunerações mirabolantes, crescimento débil e estagnação da renda das maiorias. As gestões de Bill Clinton e de Barak Obama quase nada fizeram para corrigir estas distorções.

A campanha eleitoral mal começou e a grande maioria dos analistas continua apostando no “realismo político” e nos dinheirosda Sra. Clinton. Ela se orgulha de ser capaz de “fazer as coisas funcionarem”. Do que se trata, porém, é saber de que modo, e para quem as coisas estão “funcionando”.

Nos anos 1960, era conhecido o slogan maoísta: “o vento do Leste vencerá o vento do Oeste”. Uma metáfora para dizer que a China revolucionária venceria o ocidente capitalista. Não venceu. Ede lá, há décadas, sopram apenas ventos associados ao bezerro de ouro.

Nos EUA de hoje, ainda é cedo para dizer que sopra um vento reformista vitorioso. Mas já há ali mais do que uma aragem, e se vai transformando numa brisa forte. As próximas primárias dirão se teremos uma ventania, um tornado ou mesmo um tufão. Mas as folhagens das árvores da primavera americana que se aproxima parecem anunciar-se mais viçosas do que nunca, cativando o entusiasmo dos jovens e suscitando renovadas esperanças.

 

por Daniel Aarão Reis | Professor de História Contemporânea da UFF |  daniel.aaraoreis@gmail.com