Era uma voz que não se ouvia, se sentia. Uma voz que escorria pelas veias, doce veneno. Hoje, Nana Caymmi não está mais entre nós, e com ela se fecha um capítulo fundamental da música popular brasileira — aquele em que a dor não era vergonha, mas ofício sagrado, onde mulheres “cantrizes” transformavam lamentos em legado. E mais: onde se via a diferença abissal entre o modo como homens e mulheres cantam a dor amorosa. Para eles, o despeito. Para elas, o consolo.
Nana não era apenas uma cantora. Era a última guardiã, era herdeira direta de Nora Ney, Elizeth Cardoso, Dolores Duran, Maysa e Isaurinha Garcia — sacerdotisas que não interpretavam canções, mas as viviam com a intensidade de quem rasga a própria dor. Quando Nora entoava “Risque”, não era apenas uma melodia: era um adeus fatal. Quando Maysa sussurrava “Ouça”, não era um convite, era um socorro. Essas mulheres não cantavam sobre a desamores — elas eram a dor, em carne, osso e melodia.
Nana Caymmi foi casada com Gilberto Gil
Há uma verdade incômoda na cultura brasileira: sempre permitimos que a dor fosse mais bela, mais profunda, mais verdadeira quando cantada por mulheres. Enquanto os homens podiam lamentar com certa contenção (um Nelson Gonçalves, um Agostinho dos Santos), às mulheres era concedido o direito ao desespero total. Não por acaso: numa sociedade patriarcal, o sofrimento feminino sempre foi ao mesmo tempo espetáculo e catarse. Elas transformavam microfones em confessionários. Cada performance era um ato de coragem — porque cantar “Ninguém Me Ama” como Ângela Maria, não era sobre entreter; era sobre continuar.
Mas a diferença não se restringe ao passado. Na música popular atual, os homens seguem despejando raiva ou zombaria quando são rejeitados, como quem leva o chifre ao boteco e não ao divã. Cantores como Gusttavo Lima em “Bloqueado”, Zé Neto & Cristiano em “Barzinho Aleatório” ou Eduardo Costa em “Coração Aberto” encenam o papel do macho ferido que bebe, xinga, se enraivece e culpa a mulher. É um despeito quase caricatural, onde o eu-lírico transforma o abandono em pretexto para se vingar, exibir orgulho machucado ou esvaziar garrafas. Já as mulheres — de Marília Mendonça a Naiara Azevedo, de Simone & Simaria a Maiara & Maraisa — cantam outra urgência: não para culpar, mas para curar. A dor na voz feminina não pede vingança, pede empatia.
Nora Ney, uma das inspiradoras de Nana Caymmi
Marília em “Infiel” não ameaça, mas constata: “vai dividir agora a mesma cama que eu.” Em “50 Reais”, Naiara Azevedo enfrenta o flagra no motel com ironia, mas não para se impor — e sim para se libertar. Mesmo quando as vozes femininas bebem, como em “Bebi Liguei”, de Yasmin Santos, o álcool é metáfora de afeto mal resolvido, não arma de ataque. Enquanto os homens erguem o copo como se dissessem “ninguém manda em mim”, as mulheres muitas vezes o fazem como se admitissem: “preciso me reconstruir”.
O algoritmo, no entanto, não quer profundidade — quer engajamento. Não há espaço para silêncios, para respirações entre versos, para a voz quebrada de quem canta com o coração na garganta. O sucesso agora se mede em beats por minuto, não em emoção por nota. Onde antes havia Dolores Duran transformando “Por Causa de Você” num retrato cru da dependência afetiva, agora há MC Ryan SP anunciando “Casei com a Putaria” como se fosse troféu. Onde Maysa mergulhava em “Se Todos Fossem Iguais a Você” como num poço sem fundo, Gusttavo Lima brinca com “Casa da Mãe Joana”, como se o amor fosse piada de WhatsApp.
Maysa mergulhava na canção como fosse um poço sem fundo
Nana Caymmi era a ponte frágil entre esses dois mundos. Em sua voz, até canções simples ganhavam peso de tragédia grega. Ela sabia que a verdadeira emoção não estava no que se canta, mas no que se cala — na pausa entre as frases, no suspiro rouco, no tremor que revela mais que mil palavras. Sua despedida não foi apenas o fim de uma carreira. É o último suspiro de um Brasil que entendia a música como espelho da alma. Um país que sabia que canções como “Bebi Liguei” podem até falar de sofrimento, mas jamais terão a densidade de um “Fim de Caso” na voz de Elizeth.
O palco agora está vazio. O microfone, mudo. Restam os discos antigos, ecos de um tempo em que a dor não era vergonha, mas arte. Em que chorar não era sinal de fraqueza, mas de humanidade. Nana se foi. E com ela, levamos todos um pouco menos de poesia no peito. Quem vai chorar por nós agora? Bethania? Marisa Monte? Até quando mais?
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