Se há algo mais dramático que um tango bem chorado é um argentino no Rio de Janeiro. Basta olhar para los hermanos derretendo em Copacabana para entender que “Mi Buenos Aires querido” era, na verdade, um aviso meteorológico: a cidade deles é fria, elegante e cheia de cafés — o oposto completo do que encontram aqui, onde os barzinhos se multiplicam trocando chá por caipirinha.
Como uma legião de outros, os gringos do sul chegam atrás do nosso mar e da nossa brisa, mas trazendo consigo uma bagagem emocional digna de “Caminito“, aquela ruela onde se caminha para o abismo do drama fatal. Cada passo na areia quente parece uma metáfora para a existência: “Adiós, muchachos, compañeros de mi vida“, lamentam, olhando para o chinelo derretendo sob o sol de 40 graus. Em plena praia, fazem fila para comprar água de coco como se estivessem encenando “Uno“, aquele tango em que o amor e a dor são sinônimos, só que aqui o amor é pela umidade e a dor é ver o preço da garrafinha. “Uno busca lleno de esperanzas… uma água mineral sem precisar vender um rim, poderiam cantar, se sobrasse fôlego entre uma insolação e outra.
E nem adianta oferecer jeitinho brasileiro: argentino raiz quer sofrer. Sofrer é status, é literatura viva, é crônica urbana com trilha sonora de bandoneón. Você oferece uma sombrinha de praia? Eles recusam com um olhar grave, como se dissesse: “No, gracias. Yo nací para el dolor.” Então ficam ali, torrando como se cada grau a mais no termômetro fosse uma homenagem a Gardel.
No Saara, o comércio popular, vivem seu próprio “Balada para un loco“. Perdidos entre camelôs, discutem taxas de câmbio e o preço de um short de R$ 60 como se fosse a assinatura do Tratado de devolução das Malvinas. Eles não pechincham: interpretam uma peça de teatro triste. Em cada proposta, o olhar longe, a voz embargada, e a certeza de que “nunca más volverá a ser igual“. Tudo para comprar uma sunga que, convenhamos, já viu dias melhores.
Já no calçadão, tentam jogar futebol com os cariocas. Tentam. Mas como coordenar um jogo alegre quando a alma canta “Volver“, cheia de nostalgia e lamentos? Para eles, cada chute errado é um lembrete cruel: a vida é, inevitavelmente, uma sucessão de fracassos ternos. “Que veinte años no es nada“, grita um, tentando correr. Mas, convenhamos, com trinta e sete graus à sombra, vinte anos é muito, muito tempo para aguentar.
E o mais curioso é ver a relação deles com o samba. O samba é para eles o que o tango é para nós: uma linguagem estrangeira. Um carioca levanta da cadeira e começa a sambar? O argentino olha horrorizado, como se estivesse presenciando um sacrilégio. Sorrir diante da dor? Improvisar diante da tragédia? “Qué falta de respeto, qué atropello a la razón”, recitaria Discépolo. No fundo, eles acham que a gente vive na fronteira perigosa entre a alegria irresponsável e a perda total da dignidade — mas ficam balançando o ombro escondido quando acham que ninguém está vendo.
Mesmo a gastronomia vira drama: oferecem-lhes açaí e eles fazem cara de quem foi informado do fim da civilização ocidental. “Esto es comida?” perguntam, como se estivéssemos oferecendo mingau de ração. Eles querem carne, vinho, empanada — “comida de verdade”. Tudo mais é apenas alegoria, algo exótico: imagine arroz e feijão…
No fim, é impossível não amar essa tragédia ambulante. O argentino médio no Brasil é como um tango fora de contexto: um solo de tristeza em meio a um carnaval. É tão fora do tom, tão deliciosamente deslocado, que acaba fazendo sentido. É o tango do absurdo: “No me verás caer“, cantam eles, tropeçando na areia fofa. Não cairão — eles se esparramarão, dramaticamente, como convém aos grandes heróis do exagero.
E é por isso que, no próximo verão, esperamos por eles de novo. Queremos mais drama nas areias, mais tango nas filas do mercado, mais lágrimas diante da maquininha de cartão. Afinal, como diria o próprio Carlos Gardel, “Cuesta abajo“, mas de sunga e chinelo, é ainda mais divertido.
Que venha o próximo ato desse espetáculo tropical! E se algum hermano resolver reclamar demais, a gente resolve fácil: bota para tocar “La Cumparsita” no ukulele e oferece uma cerveja gelada. Se não aceitar, pelo menos teremos o prazer de assistir a mais um ato dessa comédia portenha — tão triste, mas tão alegre, como só os bons tangos (e os bons carnavais) sabem ser.