A surpresa que os russos não esperavam: o presidente Volodymyr Olexandrovytch Zelensky, um político, ator, roteirista, comediante e produtor/diretor cinematográfico ucraniano empossado em maio de 2019

O presidente afegão, Ashraf Ghani, fugiu do país diante da aproximação das forças do Talibã. Volodymyr Zelensky, da Ucrânia, permaneceu em Kiev, recusando a oferta dos EUA de transferir seu governo para Lviv e inspirando a resistência nacional à invasão russa. Analistas distraídos tiveram, então, de reconhecer a coragem do ex-comediante, alvo fácil de suas zombarias.

Não é só coragem. Dirigindo-se ao povo russo, em língua russa, Zelensky desmontou cada uma das mentiras difundidas pelo Kremlin. O discurso precisaria ser ouvido no Brasil, onde não faltam papagaios de Putin.

A invasão destina-se a libertar a nação invadida? “A Ucrânia, nas notícias de vocês, e a Ucrânia, na realidade, são dois países completamente diferentes. O mais importante é que a nossa é real.” A Ucrânia vive sob o nazismo? “Como pode uma nação ser qualificada como nazista depois de sacrificar 8 milhões de vidas para erradicar o nazismo? Como posso ser nazista se meu avô sobreviveu à guerra integrando a infantaria soviética e morreu como coronel numa Ucrânia independente?”, perguntou o ucraniano, que é judeu.

A Rússia perdeu a razão ao invadir a Ucrânia

As indagações de Zelensky contêm reflexões raras entre os estadistas políticos atuais: “Dizem a vocês que odiamos a cultura russa. Mas como uma cultura pode ser odiada? Qualquer cultura?”.

Putin alega que a Ucrânia determinou bombardeios sobre a região do Donbass. “Atirar em quem? Bombardear o quê?” Zelensky registrou que tem amigos em Artema, que torceu pela seleção nacional na Arena Donbass antes de lamentar a derrota em meio a cervejas no Parque Scherbakova, que o melhor amigo de sua mãe vive em Luhansk. E vai ao ponto: “Veja que falo em russo, mas ninguém na Rússia sabe o que significam esses nomes, ruas e eventos. Tudo isso é estrangeiro para vocês”.

Nas palavras do ucraniano, o patriotismo cívico toma o lugar do tradicional nacionalismo bélico. A pátria é o lugar em que vivemos, celebramos e choramos, não um hino, uma bandeira ou desfiles marciais. Quantos chefes de Estado entendem essa linguagem?

Protesto ucraniano contra a invasão russa

Zelensky disputou as eleições presidenciais de 2019 como outsider, denunciando a corrupção endêmica na elite política ucraniana. Na campanha, falou verdades simples, mas não simplórias. Disse, especialmente, que pretendia romper a cisão entre os ucranianos do oeste e os do leste, cuja primeira língua é o russo. Terminou obtendo 73% dos votos. Depois, como acontece tantas vezes, a distância entre expectativas e realidades jogou por terra seus índices de popularidade. A agressão militar russa transformou-o em herói nacional — e estadista europeu.

Sob fogo, Zelensky revelou genialidade estratégica. Nos dias iniciais da guerra, reivindicou o ingresso do país na União Europeia. Embora não pudesse explicitar, trocava a ambição constitucional ucraniana de entrar na Otan por um lugar no bloco europeu. Por essa via, sintetizou a meta nacional de pertencer à Europa democrática e, simultaneamente, abriu uma fresta de negociação da paz com a Rússia.

Macron, residente francês, tenta encontrar uma saída com Zelenski e Putin

De uma Kiev sitiada, o presidente improvável distingue a busca pela paz do pacifismo hipócrita que, desde o “apaziguamento” de Munique, nunca saiu de moda. “O povo da Ucrânia quer paz. Não estamos falando de paz a qualquer preço. Falamos sobre paz e sobre o direito de todos de definir o próprio futuro. Nos defenderemos. Atacando-nos, vocês verão nossos rostos. Não nossas costas —nossos rostos.” Putin pode vencer a guerra, mas já perdeu a Ucrânia.

Zelenski transformado em estadista, independente do resultado final

Sem a resistência desesperada dos militares e do povo ucraniano, a Alemanha não teria revertido seu paradigma de política externa, o Ocidente não se unificaria em torno das sanções à Rússia, e a Ucrânia já não teria armas para se defender. Soberania, autodeterminação, integridade territorial — Zelensky insiste nos princípios consensuais de uma ordem internacional ancorada em regras. É por isso que, com tristes exceções, entre elas o governo Bolsonaro, o mundo democrático alinhou-se à causa ucraniana.

A Ucrânia, como a Espanha dos tempos da Guerra Civil, vai se tornando uma ideia — e um divisor de águas.