Gosto de ler livros autografados. Quando os autores têm a delicadeza de me presentear capricho no cerimonial de leitura. Gosto de ler pela manhã, logo que acordo, bem cedinho. Café forte depois da higiene matinal, horas de leituras. E de paz viajante. Quando conheço pessoalmente, ouço a voz autoral e até trocamos ideias. Estranho, né?! Mas é assim mesmo. No momento vivo um caso de sedução com o “Roberto Carlos: outra vez”, livro assinado por Paulo Cesar Araújo. Já declamei respeito e admiração a esse moço, um dos mais iluminados analistas da Música Popular Brasileira. Nunca fui leitor apressado, nunca. Afora situações pontuais, leio pausadamente na chave do modo “josécarlosdeler”. Acontece agora que resolvi, além e parar em cada canção citada, ouvir as gravações. Olha, isso tem sido um barato…

Sem ser didático ou apenas informativo, as mais de 900 páginas do primeiro volume do relato sobre Roberto Carlos são de uma desafetação perversa, pois parece fácil, mas… Cá e lá autores da literatura, críticos e especialistas são citados, porém, nada que roube o tom de conversa continuada. Zero pedantismo; zero dados supérfluos; zero debates inúteis. Sobra inteligência e bom senso indutivo. E sutilezas. Estou quase chorando por estar nas últimas páginas. Mas agora, quero falar das ideias iniciais que alinham lógicas evoluídas.

Livro de Paulo César Araújo: “iluminado”

A estratégia do livro centra na biografia do “Rei” por meio de suas músicas identificadas como experiências vividas. “As canções do Roberto”, como quis dizer Caetano Veloso, se qualificariam junto ao público para ambientar casos, histórias, tramas marcantes. Caracterizada a proposta geral que atravessa o livro, uma explicação matriz serve de chão para justificar o sucesso estrondoso daquele que é o mais glorificado interprete/compositor de nossos dias brasileiros: a combinação de três tendências fortes: o rock, o brega e a bossa-nova. Ninguém como Roberto soube combinar essas marcas que, aliás, trançam o fascínio exercido sobre súditos.

Entre tantas alternativas, a escolha das “canções-matrizes” – aquelas que sintetizam a essência de cada capítulo – é suplementada por outras que as explicam. Nenhuma fica de lado, e cada qual se integra no mosaico geral. E olha que falamos de centenas. Pois é, vendo o progresso do livro, muito chamou atenção algumas das composições que se perderam na memória, em particular certas que, à época, sequer registrei. E destaco a “Cachaça mecânica”, de 1963. É lógico que meu primeiro impulso foi relacioná-la ao filme “Laranja mecânica” lançado um ano antes. O enredo que avassalou o público afeito ao cinema discutia a violência institucionalizada, um dos artifícios favoritos do diretor Stanley Kubrick. Fico pensando na possível relação entre as duas “mecânicas”, a da laranja e a da cachaça.

Erasmo “Tremendão” e Roberto “Rei” Carlos

A parceria de Roberto com Erasmo estava começando e isso possibilitava alguns experimentos ousados como o contido nessa composição. Diz a lírica “Vendeu seu terno, seu relógio e sua alma/ E até o santo ele vendeu com muita fé/ Comprou fiado pra fazer sua mortalha/ Tomou um gole de cachaça e deu no pé/ Mariazinha ainda viu João no mato/ Matando um gato pra vestir seu tamborim/ E aquela tarde já bem tarde comentava/ Lá vai um homem se acabar até o fim/ João bebeu toda cachaça da cidade/ Bateu com força em todo bumbo que ele via/ Gastou seu bolso, mas sambou desesperado/ Comeu confete, serpentina e a fantasia/ Levou um tombo bem no meio da avenida/ Desconfiado que outro gole não bebia/ Dormiu no tombo e foi pisado pela escola/ Morreu de samba, de cachaça e de folia/ Tanto ele investiu na brincadeira/ Pra tudo-tudo se acabar na terça-feira”.

Fascinado pelo enredo que conta o caso de certo brasileiro desiludido que se embriaga, samba e morre numa terça-feira gorda em plena avenida, o enredo é conduzido de maneira a sintetizar uma épica malandra, culturalmente brasileira. Além do roteiro que sugere outra forma de violência – do suposto sambista trágico que buscou a morte no fim do tríduo –, essa gravação foi cerada de uma intriga paralela, apontada como plágio de “Construção”, de Chico Buarque que, diga-se, ele próprio desmentiu.

“Laranja Mecânica”: discutia a violência institucionalizada

Contabilizando o espantoso número de composições de Roberto Carlos, chama a atenção o paradoxo entre a transparência aparente de suas canções e a dimensão profunda que pode ter quando se tem sondado o bastidor.

O caso de “Cachaça mecânica” é emblemático do julgamento apressado sobre a simplicidade do “Rei”. E não bastaria apenas reconhecer sua aclamação coletiva, é preciso, como na vida, ver as razões que impulsionam atitudes. E neste campo, Paulo Cesar Araújo ajuda o “Rei” a provocar outros reinos, alguns do campo filosófico.  O que se aprende com “Cachaça mecânica” é que há mais camadas na produção do “Rei” do que se percebe na superfície do sucesso. Vale a pena sondar esse território pouco visitado.