As polacas eram moças judias do leste europeu que foram vítimas do tráfico internacional de mulheres no final do século 19 e início do século 20. No Brasil, elas foram forçadas a se prostituir

Recebi de um amigo querido uma mensagem provocativa. Deixe-me inicialmente dizer que ele é judeu e que nessa relação me porto como árabe. Tratamo-nos como Jacó e Salim e desse jeito costuramos afetos que nos emendam há muito tempo. É tudo algo natural, sutil e elegante, mas bem lá no fundo é possível ver uma ponta de disputa. Boa intriga diga-se, pois não nos largamos e não passa um dia sem um “alozinho”. E nossos olás se ramificam: um manda para o outro comida típica, um elogia a beleza física dos/das “oponentes”; a inteligência e liderança de figuras opostas é sempre ressaltada. Enfim, coisas de seres que se buscam na chave do entendimento.

Moreira da Silva, o cantor “malandro” da Lapa

Devo confessar que essas atrações são velhas conhecidas minhas. Desde a adolescência mantive contado com judeus, e sempre ganhei muito com isso. Muito. Pois é, sou daqueles que cresceram acreditando que a democracia se faz no respeito e convívio com a diferença. O exercício desse tipo de interação, para ser legítimo, tem que ter toques de respeitosas cutucadas. Elas, aliás, faíscam conversas que se trançam em episódios variados.

Judia rara”, numa gravação prá lá de sensível, foi a canção enviada pelo judeu amigo, sem nenhuma mensagem acompanhando. Conhecia a gravação de Moreira da Silva, de 1964, e me foi fácil buscar o contexto dessa produção. Sempre fui fascinado pelo tema imigração e até por gosto próprio de “filho de turco”, interesso-me por situações específicas, por casos particulares, historinhas recortadas. Um dos aspectos mais instigantes dessas sagas, sem dúvida, foi o movimento das chamadas “polacas”, mulheres advindas do Leste europeu e que compuseram a legião de prostitutas do baixo-meretrício do centro do Rio de Janeiro, então capital da nossa jovem república. Tudo é fascinante nesse episódio que, pelo viés brasileiro, foi uma ramificação de movimento maior que implicou deslocamento de grande contingente de mulheres então conhecidas como “escravas brancas”.

Jorge Faraj, o verdadeiro autor de “Judia rara”

Lembrando que a prostituição no Brasil sempre foi orientada pela padronização da burguesia europeizada, as francesas ocupavam a preferência do imaginário masculino, sendo que as polacas se constituíam opção menor, ainda que mais consideradas que as negras e mulatas. Foi nesse ambiente que Moreira da Silva, então jovem de 18 anos, um pobretão que sobrevivia de pequenos expedientes, se apaixonou pela dona de um desses prostíbulos. Ela retribuía a escolha, mesmo sabendo que o galã mantinha um casamento oficial que durou 50 anos. O que chama a atenção nesse caso é a legendária paixão que unia a judia e o galanteador carioca. A razão da música, portanto, se justifica na distinção do caso, vejamos: “A rosa não se compara/ a essa judia rara/ criada no meu país/ rosa de amor sem espinhos/ diz que são meus carinhos/ e eu sou um homem feliz/ nos olhos dessa judia/ cheios de amor e poesia/ dorme o mistério da noite/ brilha o milagre do dia/ a sua boca vermelha/ é uma flor singular/ e meu desejo uma abelha/ em torno dela a bailar”.

Sílvio Tendler e JC Sebe, os amigos que se chamam de Jacó e Salim

Mas, o que teria a “Judia rara” a ver com minha história e com meu amigo? É aí que nossos destinos continuam um passado interrupto de convivência e complemento, pois o autor não foi Moreira da Silva e sim Jorge Faraj, um árabe. Foi revendo essa história que vi reeditada em nós, em meu amigo e em mim, a força de uma memória transcendente. Tendo como ponto de chegada a discussão sobre as relações étnicas no Brasil, “Judia rara” serve de pretexto para garantir aproximações.

Sabe, retomar esse percurso musical me faz reafirmar possibilidades. É assim que Sílvio Tendler e eu temos vivido a graça de sermos brasileiros, judeus e árabes, amigos para além das diferenças. Nesta lenga, aliás, com alegria, podemos garantir a perenidade de nossas histórias tendo “Judia rara” como trilha sonora.