Dói dizer, mas somos racistas. Muito tem-se falado sobre o tal racismo estrutural, mas poucos se detém no fundamento histórico que lastreia esse fenômeno perturbador. Seguramente, o sentido defensivo plasmado em nossa cultura – que se autoproclama racialmente democrática impede perceber a naturalização dessa mostra aparentemente condenada por todos, inclusive por nós que não nos admitimos veiculadores de manifestações discriminatórias.

Como se racistas fossem sempre os “outros”, vamos atravessando o tempo num sutil silêncio que, por opressivo que é, não mais está mais se contendo. E o grito inflamado, como não poderia deixar de ser, vem dos atingidos.

A flecha que alveja o corpo social brasileiro fere um pressuposto cruel: o efeito da miscigenação demográfica. Falando de números, convém lembrar que pelo IBGE (1918) 56% da nossa população se autodefine negra. E são eras históricas de silêncio cômodo que projeta o Brasil como espaço incruento, como se nossa história fosse um processo dado sem violência, sem rupturas dramáticas. A resposta à essa conveniência se insinua na atitude implicada no pacto da conciliação aliancista que, afinal, frente a qualquer impasse arriscado, atina alternativas supostamente virtuosas que arredondam arestas. Um olhar apurado sobre nossa trajetória confirma a tal “mistura de raças”, mas ao enunciá-la, caia uma história arranhada por anulações de direitos. É chegada a hora de reconhecer a brutalidade das relações de poder que são apagadas por uma escrita feita pela elite letrada, branca, e em grande parte masculina. O primeiro passo a ser dado na corrida da correção desse desvio civilizacional impõe admitir que nem tudo é o que tem sido dito, repetido e consagrado.

Não se pode falar de silêncio histórico-cultural sem apontar erros e responsabilidades. E reconhecê-los exige reparação. Mais que aceitar presunções interpretativas é imperioso ajuizar retomadas de rotas e se abrir para desagravos. Posto isto, parte-se da premissa que estabelece a questão racial como dilema de todos. É redutor pensar nos atingidos como se a questão fosse exclusivamente deles, algo como culpa derivada de “um defeito de cor”, como diz Ana Maria Gonçalves. Superando o limite que delega a responsabilidade ao atingido, tem-se claro que a questão só será devidamente abordada se for assumida pela sociedade como um todo.

Seria ingênuo roteirizar a problemática pelo escrete dos herdeiros de estratégias colonizadoras. A dor histórica é padecida por eles, e assim, mesmo vendo limites nos propalados “lugares de fala”, é fundamental respeitar seus gritos. É em favor da sutil quebra da polarização de “lugares” que se valoriza a educação pública para todos; para todos e em todos os níveis. Só com o denominador comum dado pela Escola, e com muita pesquisa em diálogo, poderemos trocar o “lugar de fala” pelo “direito de fala”.

O progresso da educação antirracista desdobra outro debate igualmente fundamental e arriscado: as políticas de reparação. São conhecidas algumas teses que defendem inclusive o ressarcimento na forma de pena pecuniária, ou seja, com uma espécie de multa em espécie, mas afora tais extremos, há saídas plausíveis como as cotas ou políticas afirmativas. Supondo que o “problema” é social, do conjunto da população, resta constatar que os filtros de acesso devem levar em conta os desníveis crônicos dos participantes que concorrem impulsos diferentes.

Qualquer olhar rápido constata as diferenças numéricas nos postos de comando e isso revela o resultado de uma educação seletiva. É fácil notar que a subalternidade empurra para as franjas aqueles que historicamente tiveram oportunidades negadas. Noves fora, pois, a meritocracia que nivela a partir de igualdades inexistentes. Cotas é uma saída possível e isso não favorece apenas os negros. A coletividade sai ganhando com a inscrição progressiva de setores marginalizados nos quadros sociais. Democracia é o convívio com o diferente e para tanto tem-se que admitir os “desiguais”.

Se hoje as vozes antes dissonantes se impõem, muito se deve aos resultados inegáveis das práticas existentes em algumas instituições educacionais desde 2001 e implementadas a partir de 2012. Uma das consequências mais surpreendentes desse processo é a rápida equiparação de níveis entre cotistas e não cotistas que, em casos constatados, superam os ingressados sem reserva de vagas. Agora vivemos um processo complementar: cotas de trabalho e de gênero.

Imagino que o Brasil será diferente quando nos abrirmos para a ventilação de espaços abafados pelo mesmismo crônico. Que fique claro que cota não é privilégio, é direito; direito que se reverte em benefício de todos e que se inicia na admissão que somos sim racistas, mas podemos nos redimir.