Hipólito José da Costa, fundador da imprensa no Brasil

É tão natural sentirmo-nos brasileiros que nem ligamos para a origem da palavra: somos e pronto. Por ser tão pouco questionada, no entanto, a trajetória da palavra inquieta. De regra, reconhecemos que a Língua é um processo vivo, muda com sutileza, se altera, adapta-se e assim vai atravessando os tempos se ressignificando de acordo com as oportunidades. Há casos curiosos em que a inversão da proposta inicial se transforma a ponto de sugerir variações que beiram contrassensos. A palavra “piscina” era recipiente de peixes; “aquário” tanque de água para gado; “armário” local para armas. Uma das mais curiosas dessas palavras enviesadas é “barbeiro”, termo resultado de um tempo em que, além do trato da barba, a prática autorizava a extração de dentes e até fazer cirurgias. Isso, claro, deixava espaço para equívocos, condição que fez “barbeiro” equivaler a alguém que não executa devidamente atividades propostas.

Detalhes variáveis a parte, interessa avaliar o termo que designa o gentílico de nascidos ou de quem assume a condição de habitante de algum lugar – no caso do Brasil. A regra para topônimos gentílicos é clara: a soma da raiz com sufixo caracterizador de atividade profissional ou referência a um lócus, algo do tipo: quem faz pão é padeiro; quem costura é costureiro; quem faz doce é doceiro. Tecnicamente falando, essa norma procede do que se chama “morfologia derivacional” que, no caso do gentílico brasileiro, mostra-se raro, quase exceção que, aliás, inclui também “mineiro” por expressar a atividade nas minas. Brasileiro, segundo a mesma lógica, seria a pessoa que lidava com o pau brasil, exploração que de tão importante motivou o nome do país. Afora poucas exceções, no comum das vezes, a geração de gentílicos se expressa pela raiz indicativa de sufixos como: ense, ano, ista, ino, eiró, eno, ito, enho, e ado.

Chegada da família imperial ao Brasil 1808

Frente a esse fenômeno linguístico resta a busca de explicações complementares e assim reponta a História como estratégia esclarecedora. Na medida em que a referência foi deixando sua razão de ser, dado o declínio da atividade extrativista, o peso negativo implicado em ser “brasileiro” foi perdendo a pecha ruim e progrediu gerando uma referência corriqueira, sem reprovação.

Houve sim uma retomada sutil e dúbia dada pela vinda da Família Real ao Brasil, em 1808. Por aqueles dias, os portugueses precisavam se distinguir dos “naturaes”. Isso foi tencionado pelo processo de diferenciação que, afinal, resultou na Independência do Brasil, condição em que as partes se extremaram, compondo o chamado “partido português” que se opunha ao “partido brasileiro”.

Em paralelo, uma discussão feita alhures, em Londres – onde José Hipólito da Costa estava politicamente exilado no mesmo 1808 -, ao discutir o nome do nosso primeiro jornal impresso, estabeleceu-se um dilema pertinente ao gentílico a ser usado: Correio Brasiliano, Correio Brasilianista, ou Correio Brasiliense? Escolhido o terceiro, não deixa de ser instigante o fato do gentílico “brasiliense” ser destacado fora do nosso espaço territorial, exatamente para significar “ser do Brasil”. É verdade que antes, em 1627, o primeiro historiador brasileiro, Frei Vicente Salvador, referiu-se a Martin Afonso de Souza, como Araribóia, “seu nome brasileiro”, mas isso foi manifestação isolada.

     D Pedro I e a Imperatriz Leopoldina

A substância da textura política deu-se mesmo no processo de Independência que exigia posicionamentos claros, assumidos e consequentes. No jugo de definições de quem é quem, então, uma espécie de sentimento nativista, cultivado com desígnios políticos, inflamava o lado colonial que se opunha radicalmente aos mandos lusitanos. Entre portugueses e brasileiros, fermentavam lances agressivos com crescente potência e, nessa trama, José Bonifácio de Andrada e Silva se distinguia, forçando a diferenciação expressa em programas políticos.

As disputas em torno da soberania nacional demandavam qualificação das partes. O termo “monarquia” não mais dava conta do incômodo causado pela conquista do lugar do Brasil como parte do Reino Unido de Portugal e Algarves (1815). Coroando a longa luta pela autonomia, depois da Proclamada a Independência, o passo definitivo para significar “brasileiro” foi estabelecido no texto de nossa Primeira Constituição, outorgada por Dom Pedro I. A imponente carta se abria dizendo no artigo 1º que o “Brazil é a associação Política de todos os Cidadãos Brazileiros”. E avançava no artigo 6 qualificando “São Cidadãos Brazileiros:

  • Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingênuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação.
  • II- Os filhos de pai Brazileiro, e os illegitimos de mãi Brazileira, nascidos em paiz estrangeiro, que vierem estabelecer domicilio no Imperio. III- Os filhos de pai Brazileiro, que estivesse em paiz estrangeiro em serviço do Imperio, embora elles não venham estabelecer domicilio no Brazil.
  • Todos os nascidos em Portugal, e suas Possessões, que sendo já residentes o
  • Brazil na época, em que se proclamou a Independencia nas Provincias, onde habitavam, adheriram á esta expressa, ou tacitamente pela continuação da sua residencia.
  • Os estrangeiros naturalisados, qualquer que seja a sua Religião”.

Ser “brasileiro” hoje, além da palavra como gentílico, implica acatar transformações sugestivas: como conseguimos transformar uma referência negativa, colonizadora, em algo que nos distingue orgulhosamente. Não é pequena a façanha que se esconde neste exercício histórico que pode nos servir de metáfora capaz de dinamizar nossa verdadeira Independência e autonomia. Ressignificar nossa brasilidade neste momento indica luta pela manutenção da democracia constitucional e repúdio a quem nega a força contida nessa conquista épica.