Nunca imaginei que teria de enfrentar o dilema de registrar alguma lembrança sobre Rita Lee. Não tivemos nenhuma vivência pessoal. Mas vivi o dia a dia que transformaram aquela gringa de origem confederada sulista derrotada na guerra civil norte-americana que cantava e gingava como as nossas cabrochas. Apesar de seu início quase clássico e baterista. Eu nasci em Santa Bárbara d’Oeste onde residiu a família Jones, antes de incluir o sobrenome Lee em homenagem ao general confederado Robert Lee.

Conheci nossa musa em 1965. Eu imagino que os mais vigilantes dirão: “A banda Mutantes foi criada em 1966. Tá oquei?” Foi na Livraria Ponto de Encontro, na recém-criada Galeria Metrópole, que se consolidava como referência da modernidade paulistana. Ali funcionava o Jogral, um boteco musical onde se apresentavam os amigos de Luiz Carlos Paraná como Paulinho Vanzolini, Chico Buarque (fez uma música sobre o violão que ali esqueceu), Chico Maranhão entre outros. O restaurante japonês no primeiro andar era imbatível.

Formação original dos Mutantes: Rita, Sérgio e Arnaldo Baptista

            O Ponto de Encontro foi criado por um grupo de intelectuais e artistas que tentavam construir um espaço para debater ideias sem a censura da ditadura que comemorava o primeiro dos 21 anos que durou aquele 1º de abril de 1964. Era um espaço excepcional que agregava pessoas e serviços diferenciados. O grupo Os Mutantes ainda inominado é um exemplo. João Carlos de Souza Meirelles, um jovem engenheiro politécnico de origem quatrocentona foi quem bolou, aglutinou as cabeças pensantes e transformou a ideia em negócio.

Estudante de economia na USP, eu gostava de ler um livro, tomar uma cerveja, ouvir palestras antes de ir para o Jogral curtir o som paulistano com a cachacinha que Vanzolini guardava para os mais chegados.

Uma noite como outra qualquer, em 1965 (na minha cabeça), o Ponto de Encontro apresentou três garotos que nem nome tinham. Corrigindo, dois garotos e uma menina ainda adolescente (Rita teria 17 anos pelas minhas contas). O repertório era uma miscelânea de música clássica em forma e ritmo de jazz, rock e um pouco de música brasileira. Essa miscelânea agradou o eclético público. Eu nunca mais esqueci.

Vestiu-se de “presidiária” no primeiro show após a prisão em 1976

            A música estava se consolidando como forma de expressão da resistência à ditadura que ainda se escondia atrás de instituições desvirtuadas como o parlamento, a Justiça, as universidades públicas. Os festivais de música eram espaços onde se enfrentavam propostas mais engajadas com as menos comprometidas. Em 1967, o grupo que se batizou de Os Mutantes acompanhou Gilberto Gil em Domingo no Parque, vice-campeã na 3ª edição do Festival de MPB na TV Record. Ponteio de Edu Lobo e interpretada por Marília Medalha levou o caneco.

O clima político dos anos de chumbo era muito pesado. Em abril de 1972, por exemplo, nossa unanimidade Elis Regina não resistiu a pressão feita pelo Exército e polícia política e cantou o hino nacional no Quartel General dos militares. A cerimônia foi transmitida pela televisão. Enquanto assistia, Henfil, irmão do exilado Betinho, sacou papel e lápis e fez uma série de charges críticas à postura de Elis, apresentada como se fosse o próprio funeral. Fato que a marcou para o resto de sua curta vida da nossa Pimentinha.

Em 1976 foi a vez de Rita Lee que teve seu apartamento invadido por policiais que alegaram ser uma busca por maconha. A ditadura não suportava o sucesso da roqueira junto à juventude que vivia o auge da rebeldia beatnik dos cabeludos vestidos com roupas típicas que marcaram gerações. Rita estava grávida quando presa. Foi surpreendida quando seus carcereiros anunciaram a visita de outra celebridade: Elis Regina e seu filho João, ainda menino. Rita registrou no seu livro a cena que havia revelado em uma entrevista.

Episódios como esses inspiraram nosso Chico Buarque que escreveu em Jorge Maravilha: “vocês não gostam de mim, mas sua filha gosta”. Não podia imaginar que registrava em seus versos a marca registrada de Rita Lee, a eterna rebeldia que não suportava a caretice.