Ainda que não suficientemente ventilado, um dos temas mais candentes da sociedade moderna remete ao uso, guarda ou rejeite de bens materiais. Decorrência imediata da proposta consumista, dimensionam-se duas atitudes, ambas chocantes: os descartadores e os acumuladores que, usando ou não os produtos, guardam tudo e sobre o montante detém controle doentio.
A acumulação sistemática de objetos caracteriza-se pela retenção de coisas – por não vender, não emprestar, não doar, e obsessivamente mantê-las sob o próprio domínio. Para radicais, é imediato o vínculo desse comportamento com lances psicopatológicos, pois fica mecânico lincar tramas justificadoras na base do “Freud explica”. Segundo o Pai da psicanálise, esse tipo de manifestação se deve às dificuldades na fase anal quando as primeiras secreções corporais destinadas ao descarte se confrontam com motivações de retenção. O tema, contudo, visto por olhos menos orientados ganha complexidade e acetina outras intepretações. E convém logo distinguir a acumulação de colecionismo. Acumular é doença, mas como acatar o colecionismo, ou seja, aquela atitude altiva de buscar, adquirir, organizar, seriar, compor lógicas evolutivas e apresentas à sociedade?

Sistema museológico Smithsonian, sediado em Whashington DC

Falemos de colecionismo sob a ótica da função social. Sim, toda coleção tem sua história e toda história de coleção está relacionada a fundamentos afetivos postos, mais cedo ou mais tarde, à atenção social. Claro, há seriações que respondem a interesses individuais menores. Há por exemplo coleções domésticas como séries de bonecas, carrinhos, papel de cartas, bottons, esses alguns itens que têm a ver com histórias pessoais. Arrolam-se nesse quesito manias esdrúxulas, interesses individuais como daquele senhor que coleciona saquinhos de vómitos de empresas
aéreas. Deixando às gambiarras os casos tolos, vale mesmo é saudar coleções dignas de honrarias.
Dia desses visitava a história de museus e me deparei com uma informação que me fez pensar na grandiosidade de algumas coleções na cultura em geral. Ao constatar que o sistema museológico Smithsonian, sediado em Whashington DC, junta 19 museus e galerias, com mais de 137 milhões de objetos, fiquei pensando na projeção cultural desses empenhos. E no papel do estado como garantidor dessas expressões. E haja Louvre, Museu Britânico, Prado, Metropolitan… E entre nós: Museu Nacional, de Belas Artes, Ipiranga e tantos outros. E como são fascinantes as viagens permitidas não só pelos conjuntos, mas também pela formação. Não é à toa que museu significa casa das musas. E fico danado quando penso que muitos brasileiros, a despeito da qualidade dos museus que temos no país, só conhecem essas instituições quando vão ao exterior.
E por falar em colecionismo no Brasil temos que achar a chave explicativa de algumas coleções nacionais. Nem falo das instituições públicas que têm por obrigação produzir relatórios, prestar contas e abrir suas portas ao distinto público. Há um capítulo sagrado da nossa história que precisa ser apreciado e que, se bem exposto, pode garantir qualidade ao nosso comportamento cidadão: as coleções privadas e o sentido que têm independente de seus patronos.
Entre nós alguns nomes se destacam como é o caso da família Matarazzo, Assis e Gilberto Chateubriand, Roberto Marinho, Walter Moreira Salles, Armando Álvares Penteado, Castro Maia, Oscar Americano, Fernanda Marques, dentre outros. Cabe, contudo destacar dois casos que são luminosos não só pela ostentação do acervo, mas principalmente pelo sentido social permitido pelos organizadores.

Guita e José Mindlin
A família Mindlin ao longo da vida de seu patriarca José se distinguiu por colecionar obras raras, primeiras edições, correspondências importantes, e zelar por uma coleção que tem desde originais editados de Petrarca até os poemas eróticos de Drummond. Tudo em estado impecável e disposto ao público na Biblioteca Guita e José Mindlin, na USP. Uma visita à coleção é um elogio à nossa cidadania. Outro fato notável é a dupla de “casas museus”, ou seja, de residências que foram abertas ao público por disponibilidade familiar. O caso das irmãs Ema e Eva Klabin, oferece mostra de uma rara experiência familiar da elite que, com um gosto refinado, formulou duas coleções ímpares, dispostas ao público em São Paulo e no Rio de Janeiro, respectivamente.
Pensar o colecionismo no Brasil é um desafio urgente. Entre os ganhos supostos, sem dúvida o entendimento de nossa sensibilidade cultural como um todo. Isso pode dimensionar a apreciação de outra linha interpretativa do conjunto de nossas expressões que, felizmente, tem no popular bom desenvolvimento. E junto, quem sabe ajude melhorar nossa alta estima corrigindo o que Nelson Rodrigues identificou como “complexo de vira-lata”.