Jorge Luiz Borges

Para Jaime Pinsky

 “Sempre imaginei o Paraíso como um tipo de biblioteca”, a frase é de Jorge Luiz Borges, e dele também o verso com o final mais arrebatador que conheço “Ninguém rebaixe a lágrima ou reprove essa declaração de maestria de Deus que, com magnífica ironia, me deu todos os livros e a noite”. A história deste recorte remete a um traço cáustico da trajetória do escritor argentino que ao receber o convite para ser o Diretor da Biblioteca Nacional daquele país perdia gradativamente a visão. Frente a essa fatalidade pergunta-se de que noite falava? Da noite para leituras “de todos os livros”, ou da escuridão que o impediria?

Recuperei estas citações depois de uma visita a uma livraria, num desses dias vagabundos em que a letargia se torna mandante. Devo revelar que sou daqueles que muitos reconhecem como “traça de livraria”, de várias, aliás. Nada de fidelidade a uma só. Em se tratando de livros, é bom pecar no atacado. Basta uma porta aberta ou vitrine exibida e lá vou eu. Quando passo um tempo sem me deixar perder entre livros, sinto que vivi menos, que algo essencial me falta e entendo melhor o que Lacan chama de “vazio”. É afronta resistir a tantos desejos e provocações, e desbragado entrego-me à sedução das novidades paginadas. Só passar por qualquer dessas lojas causa frenesi, arrepios e quando não posso entrar padeço algo próximo do que Rebecca James chama de “doce tortura”. E elas estão aí.

Há algo de grandioso na resistência das livrarias atuais por superar apostas de quebras motivadas pela concorrência dos livros eletrônicos. Regozijo admitir a sobrevida das editoras que, apesar do montão de dificuldades, se erguem triunfantes mostrando perspicácia inclusive algumas ao assumir cafés refinados, espaços especiais de leituras, cantinhos de vendas de produtos complementares como marcadores e sugestivas canecas de chás. Mas não são apenas as grandes que causam orgulho. Algumas modestas, dessas que convocam saudade antiga, com cheiro de passado, certas de que guardam em prateleiras cansadas o sabor do encanto e do conhecimento, essas merecem ladainhas pelos ora pro nobis.

Já confessei várias vezes que andar entre fileiras de livros me faz sentir homenageado como se legiões de vidas se rendessem a mim, ou me meiassem num jardim de flores que se assanham por meus olhares. E sinto-me sorvendo saberes que me empoderam como se fosse capaz de experimentar todas as aventuras que, num delírio, bradassem por meu juízo. Aliás, devo lembrar outra frase deliciosa que proclama “eu sou livre; tu és livre; viva a livraria”, até recobrei mais uma passagem que sempre pinta em ocasiões oportunas “livre a liberdade livrando-se”. Livrando, que verbo ambíguo, mago.  E político também: livre, livraria… Mas, muito mais que exercitar jogos de palavras, resta dizer que há vida ardendo em páginas que nos fazem divinos ressuscitadores de espíritos que se ousam contar.

Livraria, café, cultura e arte

Não é difícil romantizar casas de livros. A mera imagem de lugar de contos e registros permite metáfora de abrigo, de espaço fechado e íntimo, refúgio da solitude onde regemos plenos. É até natural falar dos livros como anjos que nos guardam e livram dos males, amém. Por lógico, tenho preferências, algumas até estranhas: gosto de ir sozinho, sem relógio e durante o dia. Internado, não tenho critério de busca, vou deixando o instinto me levar pelas filas, gosto de relacionar títulos com capas e, quando paro em um ou outro, abro o livro buscando o índice como se tateasse a descoberta de algum segredo. Ah, notei que sempre entregue aos prazeres, quando internado em livrarias exagero nas delícias possíveis e entendo o dizer de Benjamin Franklin ao se descrever nelas “Quando estou numa livraria sou como um sultão entrando num harém. Sei bem o que fazer, mas não sei por onde começar!”.

Se algo concluo na travessia da vida de leitor compulsivo, não tenho dúvida: seria virtuoso cair morto numa exposição de livros e ter em minha lápide algo próximo de “aqui jaz um leitor que não tendo conseguido ler todos os livros que queria, fez um esforço grande para tanto”. E então testar o sonho de Borges, do Paraíso como livraria.