Para Catarina Lobouré Madeira Barreto Ferreira

“Meu Caí, mais humano do que muitos humanos!”

Todo contador de histórias tem pronto um caso na ponta da língua. Aliás, vale dizer que todo real contador, os bons de verdade, tem mil, tudo, é claro, dependendo da ocasião e da audiência. Doces cínicos, encantadores crônicos, narradores carentes de aplausos potencializam repertórios surpreendentes. Com este álibi, me permito dizer que tenho uma estranha paixão pela biografia de alguns personagens esquisitos, tipos que nem sempre compõem a lista dos queridinhos oficializados pela opinião pública. De regra, trata-se de pessoas gauches, heróis com perfis contestadores, gente meio excêntrica. Exceção honrosa, o General Cândido Rondon.

Nascido no interior do Mato Grosso, na minúscula Santo Antônio de Leveger, em 1865, caboclo descendente de indígenas guaná, bororó e terena, se fez como militar especializado em telegrafia. Durante a década de 1920, atuou no Movimento Tenentista e na Revolução de 1924 em São Paulo, condição que aliás lhe garantiu o título de General. Dono de posições firmes, foi contra a Revolução de 30 – o que lhe custou dias de prisão. Sobretudo, Rondon destaca-se por três bandeiras que justificam a referência “o ideal feito homem”: sua incansável dedicação à causa indígena, o declarado combate ao nazifascismo e a coragem para missões de alto risco. Por certo, sua atuação em 1907 implantando linhas telegráficas na Amazônia – e a liderança na chamada “Comissão Rondon”, que durou até 1915 – foi um dos atos mais consequentes da nossa história recente. Há muitos detalhes invulgares em sua trajetória, inclusive sua presença na expedição que trouxe o presidente dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt, interessado em explorar o Vale do Rio Paraguai e a região amazônica.

Presidente Roosevelt estava interessado em explorar o Vale do Rio Paraguai e a região amazônica

A par de tantas andanças, todas interessantes, ao lado de feitos heróicos e de causas fundamentais para o nosso desenvolvimento, há uma singularidade apaixonante na vida do General Rondon: sua devoção incontida por um cachorro de estimação, Caí era seu nome. Esther de Viveiros coletou muitas entrevistas com o intrépido general e em mais de 600 páginas produziu um livro fascinante “Rondon conta sua vida”, leitura aconselhável inclusive pelo prefácio de Rachel de Queiroz. Como seria de se esperar. as peripécias contidas são inúmeras, mas nenhuma é mais comovente que a despedida de Rondon de seu amado Caí. E são seus os dizeres sobre a morte do companheiro inseparável:

“À tardinha do dia 2 de junho (1919) veio ainda me receber, embora já andasse doente, saltando para a canoa onde eu estava – teve então a primeira síncope. Tentou, ainda assim, carregar o meu chapéu, o que fazia sempre, quando eu chegava. Porque era um cão excepcionalmente inteligente, um pointer de rara beleza. Meu nobre Caí! Admitindo minha superioridade, não te consideravas, entretanto, escravo. Era voluntária a tua submissão e teus olhos, quase humanos, viam em mim um deus, um rei, acima de tudo justo, capaz de conhecer todos os teus pensamentos para, de ti, só exigir aquilo que te conviesse.

 

Por teu lado, lias o que se passava em mim, compreendias minha disposição de ânimo, conservando-te horas a meus pés, imóvel se me vias ocupado. E, se me sentias triste, vinhas encostar tua bela cabeça, olhando-me como se dissesses: ‘Não te aflijas, aqui estou eu, o teu verdadeiro amigo, pronto para substituir todos os teus amigos que falharem, para combater todos os teus inimigos. Vamos dar um passeio e não penses mais. Eu não costumo pensar…’ Tudo isso acompanhado de expressivo movimento de cauda…

Meu Caí, mais humano do que muitos humanos! Disse-me, uma vez, um índio que nos acompanhava depois de muito observá-lo:

– Meu Coronel, Caí não é cachorro!

– Que é ele, então?

– Caí é… gente…

E que precioso auxiliar, como guarda do acampamento, carregando a caderneta com inexcedível zelo, indo buscar o que se lhe pedia, encontrando, com seu admirável faro, as fichas que, durante a medição, caíam entre as folhas secas.

Perdera-se, certa vez, uma caderneta. Chamei-o e, segurando-lhe a cabeça pelas orelhas, olhei-o bem nos olhos e ordenei repetidas vezes, com voz firme:

– Caderneta, Caí, busca!

 

Rondon tinha uma incansável dedicação à causa indígena

Daí a dois dias voltava ele com a caderneta na boca. Não admitiu que ninguém lhe tocasse. Correu para mim, deitou sua grande cabeça no meu colo, a me fitar amorosamente, a solicitar os afagos que lhe não foram regateados…

Morreu quando terminamos nossos trabalhos, quando não mais corríamos perigo e eu não tive a alegria de lhe proporcionar vida sossegada na chácara onde sonhava viver com os meus, com a minha bicharada…

Vida que não estava muito longe, porque eram meus últimos esforços no sentido de minha completa emancipação da vida do mato…

Enterramo-lo no último dia de serviço da expedição, no porto do antigo fortim da Conceição, debaixo de três grandes loureiros cuiabanos…

Desde menino aprendi a respeitar Rondon por razões cívicas, maduro refiz minha admiração, com a história de Caí. E fico pensando na dignidade de biografias que insistem em trocar o lado heróico pelo humano como se não houvesse lugar para delicadezas nas figuras públicas.