Falar sobre “Memórias da Emília”, livro publicado em 1936, exige cuidados, pois o texto é serelepe como a suposta memorialista. Mas estejamos avisados, pois no engraçado das passagens se escondem segredos traiçoeiros que armam ciladas complicadoras de análises. Antes, porém, cabe lembrar que desde 1920 Lobato vinha se dedicando aos escritos para crianças, e assim foi evoluindo casos que se relacionam entre si. “Memórias de Emília” é continuidade, mais um elo, na sequência de livros que se completam. Mas é também inovação, na medida em que mescla, além do pessoal do Sítio, outros personagens, alguns conhecidos outros nem tanto. Dos “convidados” para a trama, alguns participantes ganham protagonismo como é o caso do Anjinho Florzinha das Alturas que Emília surrupiou como lembrança da experiência registrada em um livro anterior, “Viagem ao céu”, de 1932. Surpreendente mesmo, contudo, é a colagem que ousadamente convida para a mesma trama, figuras da tradição europeia e norte-americana, como Peter Pan, Alice, Capitão Gancho, Popeye e até Dom Quixote.

O roteiro das “Memórias de Emília” é linear e se inicia pela proposta de Emília que convoca o Visconde de Sabugosa para escrever como se fosse ela. Depois de discutir a (i)lógica da produção de “Memórias”, a primeira aventura arrolada remete ao Anjinho e a visita das crianças inglesas ao Sitio. Após a fuga do Anjinho, que sorrateiro retornou ao céu, as crianças voltaram para a Inglaterra e então se abrem os problemas com Popeye que, no caso, é uma espécie de bandido, bêbado e malfeitor; resolvida a contenda com o Marinheiro que é liquidado por Pedrinho, Emília descobre que o Visconde registrava aspectos negativos da personalidade da Boneca que, irada, o destitui e, indignada, assume ela mesma a redação. É quando decide ir para Hollywood e se envolve em uma trama interessante com a atriz Shirley Temple. A turma do Sítio descobre “Memórias” e discute com Emília, abordando questões de juízo sobre vários deles. Na parte final do livro, a própria Boneca termina a história anunciando que, mais velha, escreveria a segunda parte.

A rapidez narrativa de Lobato nos livros para crianças é sempre alucinante, mas, talvez, o “Memórias de Emília” seja a mais veloz de todas, a começar pela existência das três vozes narradoras, a saber:

  1. da própria Emília que ditaria a história, mas delega ao Visconde de Sabugosa escrevê-las;

2. da presença do Visconde que, depois de redigir a maior parte das histórias, cansado do (des)mando da Boneca, resolve ele escrever o que lhe vinha à cabeça, inclusive com impressões vingativas da “dona” das memórias;

3. e um narrador oculto que relata os diálogos entre a Boneca e o Visconde.

Caso me fosse perguntado o que mais me chama a atenção no “Memórias”, não teria dúvida em responder é que a atitude matreira da Emília contratando alguém para escrever como se ela fosse. Assim, ficava colocado de saída um problema moral, referente a autoria e a inventividade. Vejamos, de começo, o que teria dito a própria Emília em resposta a Dona Benta, indignada com a precocidade da boneca em propor contar sua jovem vida:

Bem sei que tudo na vida não passa de mentiras, e sei também que é nas memórias que os homens mentem mais. Quem escreve memórias arruma as coisas de jeito que leitor fique fazendo uma alta ideia do escrevedor. Mas para isto ele não pode dizer a verdade, porque senão o leitor fica vendo que era um homem igual aos outros. Logo, tem de mentir com muita manha, para dar ideia de que está falando a verdade pura.

Analisemos o sentido da mentira neste caso específico, pensando que se trata da combinação da licença poética com a condição ficcional. Sabe-se que a intriga e o lúdico servem de motor para apresar atenção de leitores mirins. Mas, qual o limite?

Problematizemos a questão que afinal tem comprometimentos éticos importantes. Afinal, Emília é heroína ou anti-heroína? Neste caso, como pensar a postura emiliana como modelo de virtude para crianças? Indo mais fundo, mergulhando em mares filosóficos, cabe indagar sobre o projeto de educação de Lobato. Retoma-se a questão básica que sustenta o debate sobre o sentido da Literatura Infantil e nesse contexto valoriza-se “Memórias” como argumento central para o entendimento do conjunto da obra. Considere-se que uma reflexão adulta sobre uma obra consumida por crianças implica leitura que não fique apenas na pândega ou nas estratégias pedagógicas ou narrativas. Antes, vale ressaltar uma característica importante da circulação dos livros no Brasil. Em países como a Inglaterra livros como “Alice no país das maravilhas” não se restringe a leitura para crianças. Compondo o universo da chamada Literatura Fantástica, escritos como esse ganham quilate filosófico. Aliás, no mesmo sentido, questiona-se da política de consumo de livros ditos para criança, pois o recontar de clássicos é uma prática, inclusive exercitada por Lobato.