“A França entedia-se em paz. Deve-se lamentar a ausência de greves, guerras e crises? O fato é que há uma atmosfera esterilizante. O país está ameaçado de morrer de tédio”

As palavras, escritas pelo jornalista Pierre Ponté em 15 de março de 1968, davam conta de um longo período de prosperidade econômica e paz social. Nada de excitante acontecia. Uma pasmaceira. Pouco mais de um mês e meio depois, ele poderia reclamar de tudo, menos de tédio.

O vulcão começou a estremecer na Universidade de Nanterre, na periferia de Paris, onde protestos estudantis ensejaram enfrentamentos com a polícia. O reitor teve uma ideia que lhe pareceu genial: suspendeu os cursos. Fechada a universidade, os jovens rumaram para a Sorbonne, principal universidade francesa, no Quartier Latin, à margem esquerda do Sena, próxima ao centro de Paris. Ali chegaram na manhã de 3 de maio cerca de 400 moças e rapazes. Em relação aos 160 mil universitários da cidade e aos 500 mil do país, uma gota d’água no oceano, mas não lhes faltavam audácia, irreverência e determinação.

Nanterre

Uma interpretação equivocada incendiou o maio francês que teve início em Nanterre

No início da tarde, já havia uma pequena multidão assistindo, bem-humorada, mais curiosa e simpática do que participativa, àquela espécie de happening, onde se misturavam, num ar de festa, reivindicações imediatas e denúncias políticas. Para as autoridades aquilo passara dos limites. Chamaram a polícia, que apareceu com cassetetes e bombas de gás lacrimogêneo. No fim da tarde, evacuou-se a universidade, mas os estudantes espalharam-se pelas ruas em passeatas de indignação. O pau quebrou feio durante a noite. No balanço final, havia mais de 100 feridos e 596 presos.

Foi a primeira noite do Maio francês.

Nos dias 6 e 10, houve novas passeatas e enfrentamentos: 890 prisões, 1.916 feridos (596 policiais), 317 hospitalizados e mais 250 carros destruídos ou queimados.

Esboçou-se um programa de reformas: democratizar a educação nacional, mudar os currículos, alterar em profundidade as relações entre professores e estudantes. Uma crise não apenas educacional, mas cultural, social e política. Os dias seguintes o evidenciariam.

Policia fora do quartier

Os manifestantes exigiam a polícia fora do Quartier Latin

Os sindicatos chamaram uma greve geral a partir do 13 de maio. Neste dia, centenas de milhares de pessoas manifestaram-se. O governo fez concessões, autorizando a reabertura das universidades. Muito pouco e tarde demais.

No dia 14, em Nantes, numa empresa de 2 mil operários, a Sud Aviation, começou uma greve inusitada, com ocupação da fábrica e detenção do diretor e demais quadros dirigentes. O exemplo contaminou centenas de fábricas, assim como os transportes aéreos e terrestres. Em seguida, pararam os correios e a distribuição de jornais. O mundo das artes entrou em ebulição com a ocupação do Teatro Odéon e a interrupção do festival de Cannes.  No dia 20, cerca de dez milhões de franceses estavam com os braços cruzados.

As forças políticas tradicionais, à direita e à esquerda, não conseguiam se situar. O governo não governava. O poder vacilava. E caiu… nas ruas. O estranho é que não havia quem pudesse tomá-lo. Uma crise revolucionária?

No dia 24, outras manifestações agitaram o país. Mais centenas de feridos e de prisões. A bolsa de valores e duas delegacias foram atacadas. Partidários do governo organizavam-se em Comitês de Defesa da República.

Haveria uma guerra civil?

Flor x baionetas

Estudantes receberam a polícia com flores

A conciliação entrou em cena: por iniciativa do governo, depois de 36 horas de negociações, patrões e centrais sindicais chegaram a um acordo, com concessões substanciais aos trabalhadores: aumento imediato de 35% para o salário mínimo e de 10% para os demais níveis; redução da carga horária de trabalho e da idade de aposentadoria; reconhecimento de seções sindicais nas empresas.

O acordo suscitou controvérsias, muitos hesitavam em retomar o trabalho. Mesmo porque a maioria pensava que o general De Gaulle, há dez anos no poder, tinha seus dias contados.

Mas ele virou o jogo no dia 30 de maio: dissolveu o Parlamento e convocou eleições, em dois turnos, para os dias 23 e 30 de junho. Uma aposta alta. Neste mesmo dia, uma grande manifestação em Paris apoiou o general e a restauração da Ordem. Gritavam os manifestantes: “Abaixo o comunismo”, “De Gaulle não está só!”. “A França para os franceses”. No dia seguinte, manifestações semelhantes se realizaram em cidades da província. Invertia-se uma correlação de forças que parecia definida.

Proibido proibir

“É proibido proibir” foi a palavra de ordem dominante

O mês de junho foi o mês da restauração. Lentamente, voltou-se ao trabalho nas empresas, nas escolas e nas universidades. Ainda houve manifestações, mas sem o potencial indutivo das anteriores. Nas eleições programadas, as forças da Ordem ganharam 358 das 485 cadeiras em jogo. Numa história sempre imprevisível, o tédio triunfou e recuperou sua capacidade de sedução.

Morreu Maio. Sob suas cinzas, porém, brasas incandescentes ainda arderiam nos embates e esperanças das décadas seguintes.

Daniel Aarão Reis, Professor de História Contemporânea da UFF

Email: daniel.aaraoreis@gmail.com