Para Silvio Tendler, utopista padrão

 Foi de repente, algo assim do nada, que me surpreendeu prestando atenção na letra de Imagine, de John Lennon. Senti-me rezando. E não saberia dizer de algum porquê desse estranhamento, pois há mais de 50 anos – primeira gravação é de 1975 – ouço e até cantarolo: “You may say I’m a dreamer/ but I’m not the only one”. E retomei a letra numa tradução pessoal “Você pode dizer que sou um sonhador/ mas eu não sou o único”, e fui progressivamente declinando os versos seguintes “Espero que um dia você se junte a nós/ e o mundo será um só”. Nossa, mais de meio século depois dessa convocação ainda pulsam os mesmos chamamentos. Perguntei-me então das razões latejantes que mantém o insistente sucesso como teorema social a ser decifrado. Afinal, de que enredo Imagine seria trilha sonora? Sua presença insistente teria alguma função maior do que a beleza melódica? Aliás, ela persiste apenas como peça catártica?

Minha primeira resposta veio por conta das inefáveis repetições que afinal esvaziam mensagens tão pungentes como “nenhum inferno sob nós/ acima de nós apenas o céu/ Imagine todas as pessoas vivendo o presente”. Creio que a primeira vez que ouvi foi pela voz mansa de Joan Baez e depois por outras gravações, todas intensas: Stevie Wonder, Madonna, Elton John, Diana Ross. E não faltaram as versões para o português: Roberto Carlos, Fábio Jr. Daniela Mercury entre outros – mas nenhuma tão apaixonada com a de Cauby Peixoto com aquele vozerio potente e encenação dramática. A medida em que dava estrada para a reflexão, atalhos se abriram. A mensagem é recomendação planetária, mas limitando a propalada irmandade global, redimensionando o escopo de Lennon, pensei no Brasil hoje tão retaliado. E imaginei…

Em 1975, eu dava continuidade à sina de professor de História impulsionando minha carreira como professor na Universidade de São Paulo. Naquele mês de agosto, empolgado, defendia minha tese de doutorado sob o título “A presença do Brasil na Companhia de Jesus”. Misto de utopia e inocência, parecia-me virtuoso engrossar a lista dos que sondavam redesenhar nossa História desde a colonização. A premissa me comovia: supor que a grande instituição colonizadora-jesuítica, a maior de todas, teria se “abrasileirado”. A pretensão era enorme: contrapor à monumental obra de Serafim Leite “A Companhia de Jesus no Brasil”. E justificava minha hipótese mostrando, por exemplo, que apenas no Brasil seria possível o ingresso do Padre Antônio Vieira, mulato, na Ordem tropicalizada – na Europa seria inviável. E junto arrolava os “bons ares” que teriam trazido Anchieta tuberculoso para cá, e dele o esforço para traduzir para a “língua geral” a fabulação bíblica que haveria de se adaptar à audiência tupiniquim. Minha ingenuidade era tamanha que pretendia inverter a interpretação do domínio lusitano trocado pela inevitabilidade das adequações locais.

A par disso, o lado cruel daquele 1975, escancarava a ditadura civil-militar que não conseguia mais conter o próprio mal cheiro, e então o general Geisel, aquele ditador em trânsito, iniciava a Abertura Política difundida sob andamento “lenta, gradual e segura”.  Evidente na farsa do milagre econômico, todo aparato militar se desmoronava pela incontinência da repressão responsável pelo assassinato de 191 pessoas e por 243 desaparecidos – tudo segundo dados apurados pela Comissão Nacional da Verdade. No rosário de crimes bárbaros, todos execráveis e impunes, um significou a gota d’água: o “suicídio” de Vladmir Herzog nos porões do DOI-CODI. Ainda que outras mortes fossem perpetradas depois, a de Vlado marcou aquele 1975 como o momento do basta. E a voz das utopias repontaram no “Diretas Já”. Nossa, como o Imagine, era cabível!…

Vladimir Herzog, jornalista assassinado no DOI-CODI em outubro de 1975

Os tempos passaram, o sonho democrático foi se esvaindo e na observância da onda cíclica, outra vez, o obscurantismo nos assolou, agora sob artimanhas atualizadas. No ar, Imagine continuou sua saga convocando sonhadores que, na timidez das possibilidades, juntando devaneios, fez uma estrela – a única possível – brilhar.

Vendo tudo, porém, até dói reeditar a questão proposta pelo próprio Lennon “eu me pergunto se você consegue/ sem necessidade de ganância ou fome/ uma irmandade dos homens/ imagine todas as pessoas/ compartilhando o mundo inteiro”. Em um Brasil tão esfarelado, com apologia ao ódio, facilitação do uso de armas, meio ambiente degradado, com 21 milhões de famintos, violação da cultura e da ciência, de agressão às instituições democráticas, indaga-se até quando Imagine se manterá? Será que a coleção de distopias que de tempo em tempo assola nossa história um dia conseguirá tirar aquele Lennon das paradas? Será? Imaginemos…