Não à toa, o presidente da República tem se empenhado em desqualificar diagnósticos sobre a realidade brasileira e as instituições que os produzem. Em sete meses de governo, Jair Bolsonaro e membros do alto escalão do governo desacreditaram Inpe, IBGE, Fiocruz, Ipea. Lançaram dúvidas sobre números do desmatamento, do desemprego, da miséria, do consumo de drogas, do acesso a armas de fogo. Argumentaram, não evidências concretas, mas com percepções subjetivas: de caminhada por Copacabana para aferir epidemia de dependência química a aferição da quantidade de famintos pela observação a olho nu de desnutrição da gente que passa na rua. Desconsideraram que informação de qualidade é a base das políticas públicas de excelência. Desprezá-la é atalho para impor autoverdade, confundir a sociedade e moldar o sistema a bel-prazer.

A retórica política sem fundamentos, que grassa em Brasília, faz escola também no Rio de Janeiro. Basta prestar atenção nos discursos do governador. Ontem, pela via de levantamento consistente da Defensoria Pública do estado, desmoronou o factoide do medo e da criminalização perpétua de menores infratores. A instituição tornou público relatório sobre reiteração de atos infracionais no Rio, dois meses após concessão de liminar pelo Supremo Tribunal Federal no pedido de habeas corpus coletivo para transferência ou liberação de adolescentes de unidades socioeducativas superlotadas. Importante assinalar que a decisão alcançou locais com ocupação superior à taxa média de 119%, ou seja, quase um quinto além do total de vagas disponíveis. Além do Rio, a sentença atingiu Ceará, Bahia e Pernambuco.

Pontes e Galvao

Ministro Marcos Pontes foi a mão de gato para afastar Ricardo Galvão do INPE

A decisão do ministro Luiz Edson Fachin — que ainda poderá ser confirmada ou não pela Segunda Turma do STF — determinou, em fins de maio, que os menores fossem incluídos em programas de meio aberto, exceto nos casos de ato infracional cometido por grave ameaça ou violência. Desde a origem estava claro que a liberação não beneficiaria adolescentes apreendidos por violações extremas. Ex-juiz, o governador Wilson Witzel se pôs contra a medida e avisou que não receberia os infratores na rede estadual de ensino:

“Esses menores são problemáticos, as famílias não vão ter condições de cuidar deles como deveriam, e a escola não vai poder receber. Provavelmente vão para rua, vão voltar para o sistema”, especulou.

Na semana passada, a Defensoria pesquisou a situação de 577 adolescentes infratores liberados pelo Degase na capital fluminense e nas comarcas de Belford Roxo, Campos e Volta Redonda. Não chegou a 4% a proporção total de reincidência – precisamente, 3,8% nas quatro áreas. Na cidade do Rio e em Campos, 96% não voltaram a unidades socioeducativas, seja por nova infração, seja por mandado de busca e apreensão. No município da Baixada Fluminense, nenhum. Zero. Em Volta Redonda, 95% seguem na rua. Diferentemente do que previu Witzel, apenas 22 adolescentes voltaram ao sistema.

Witzel

Ex-juiz federal, governador Wilson Witzel (à direita)liberou o assassinato frio de delinquentes no Rio

Num ambiente político pontuado por bravatas, imprecisões e mentiras sobre produção de dados e integridade dos órgãos de pesquisa, o levantamento da Defensoria serve para reiterar que a solução de mazelas locais ou nacionais passa por diagnósticos confiáveis, mesmo desagradando aos mandatários. Jair Bolsonaro não é o primeiro presidente a fazer pouco ou duvidar de estatísticas socioeconômicas indesejáveis. Mas é o que mais tem atacado, não apenas números, como também instituições e profissionais que os produzem.

O arcabouço de dados do Brasil é instrumento democrático que ajuda a sociedade a conhecer seus problemas e reivindicar soluções na forma de políticas públicas e escolhas orçamentárias. Desqualificá-lo é lançar um país inteiro no breu do desconhecimento, da ineficiência contratada. Efeito semelhante provoca a autoridade que escolhe reforçar preconceitos e estereótipos, em vez de ancorar em evidências estatísticas decisões e projetos para a população a serviço de quem deve governar.