Vermelho paixão tomou conta do  paraíso

Quando pensei nesta crônica, a ser publicada no domingo de carnaval, logo me veio uma dúvida, seria mesmo domingo o primeiro dia dos festejos momísticos? Foi o que bastou para reavivar a velha (e deliciosa) polêmica cara aos antropólogos: o que seria o carnaval, um tríduo que inverte o cotidiano (DaMatta), ou uma expressão apocalítica do dia a dia (Renato Ortiz)? Não me canso de recuperar esse debate porque o tenho na conta dos mais explicativos do cotidiano brasileiro. Sim, recorto o tema na singularidade de nossa cultura, mesmo respeitando todos os outros, muitos carnavais. Aliás, como diz Morais Moreira pela voz da Gal Costa “vem meu amor, feito louca, que a vida tá pouca, eu quero muito mais, mais que essa dor que arrebenta, a paixão violenta, oitenta carnavais”.

No caso da inversão da rotina diária, teríamos alguns atestados musicais que, como tantos, pontificam a permissividade excepcional da data. Talvez, nessa linha, o consagrado Zé Keti tenha o trono no “carnaval desengano” onde declara “deixei a dor em casa me esperando” e, prossegue na evidência de que, por fim, na quarta-feira dá-se um ponto na interrupção pois “sempre desce o pano” e então tudo não passaria de uma “esperança que gente, longe vem na esperança”.

Mestre Sebe não perde a oportunidade

Na contramão, desmentindo a fantasia dos três dias onde pobre vira rico, homem vira mulher, gente vira bicho, outra série de letras mostra que, como quer Karan Cavallero, “todo dia é carnaval, todo dia é fevereiro” ou como reforça Pablo Vitar em composição com Rico Daslasam “eu não espero o carnaval chegar para ser vadia, sou todo dia, sou todo dia”.

Margeando o debate teórico, fato concreto evidencia o carnaval como festa da irreverência. É verdade que há uma dinâmica quase incontrolável nas alterações processadas ano a ano. Interessa, contudo, notar que alheio às mudanças, um elemento subsiste: a irreverência. Sim, há algo de fascinante neste quesito, pois independente de todos os mil lances novidadeiros potencializa-se algo que convida supor atrevimento, ou uma espécie de bronca no sistema e nas instâncias de poder.

Em qualquer gênero de manifestação carnavalesca, a crítica sempre dá um jeitinho de aparecer. Desde as mais formais e persistentes expressões, como por exemplo a entrega da chave da cidade para o Rei Momo, preside certa apreciação contrária à ordem simbólica, como se o governo, provisório, fosse da permissividade. Não há como negar o substrato dionisíaco que reponta com a liberdade permitida nesses dias. O diálogo contrário a ordem e aos chamados “bons costumes” também integra a pauta provada na pouca roupa.

Não deixou de tomar a benção da bandeira do Salgueiro

Acatando o suposto da irreverência, é importante perceber o significado complementar das máscaras. É claro que não se exige responsabilidade analítica de todos os foliões. Preza-se a legitimidade do uso de qualquer fantasia sem intenções explícitas, mas, quando se propõem considerações sobre a memória coletiva, sobre o inconsciente social, têm-se revelações importantes. É exatamente neste sentido que penso nas escolhas populares usadas por frequentadores de blocos. Tento prestar bastante atenção nos tipos estampados nesses artefatos que são bem baratos e de fácil aquisição. Tanto aposto nessas escolhas que jogo minhas fichas nas críticas políticas às figuras depostas pelo voto popular.

E assim, a política não entra apenas nos grupos sem enredos. As grandes escolas de samba também incorporaram pautas sociais e por elas filtram-se debates sobre racismo, questões da cultura de minorias, de destaques políticos. Um breve passeio pelos sambas de enredo deste ano mostra, inclusive, a tentativa de se reescrever a história da humanidade segundo outras tradições que não as consagradas pela historiografia oficial. O caso da sempre inovadora Salgueiro, do Rio de Janeiro, é prova disso. Exaltando o vermelho, em sugestiva alusão ao momento político que vivemos, diz passagem do samba de oito autores “vermelha paixão salgueirense, que invade a alma, tá no sangue da gente, o morro desce na batida do tambor” e, quase sem sutileza, conclui “vermelha paixão salgueirense… o morro desce na batida do tambor, nesse delírio que o artista se inspirou” e pontifica “feliz é aquele que tem o Salgueiro no coração”. Entenderam?