Para Andrea Paula

Pois é, aconteceu. Bastou eu enviar o texto da semana passada “sapateadas filosóficas” e logo veio a primeira bronca. O editor, sempre tão discreto, não me poupou dizendo que achava a crônica próxima do gosto pequeno burguês, cheio de filmes hollywoodianos, colecionistas e referências a marcas de sapatos”, tudo sugerindo um quadro excludente de outros segmentos cabíveis no tema. Sinceramente, pensei em cancelar e substituir por algo, digamos, menos “metido a chique”, como pontificava outro comentário. Reli, titubeei e, por fim, conclui que valia a pena mantê-lo. No total foram nove “caneladas” polidas, ainda que cheias de agulhas.

Grande parte dos comentários foi assinada por feministas – algumas radicais do tipo “lugar de fala” ou “só mulher pode falar de mulher”. Não seria então surpresa colocar as cobranças mais ácidas na conta de Freud e no sustento prá lá de polêmico referente à “castração natural das mulheres” que, com o uso dos pés, promoveriam uma espécie de compensação do falo penetrando o orifício significado pelo calçado. “Nossa professor, não esperava que o senhor endossasse passagem tão machista”, concluía. E não foi só um chute “credo, como pode repetir isso” repudiava outra. Aiaiai, e eu que pensei que era apenas um pretexto…

E as feministas não deram trégua “por que não falou das chinesas que tem que comprimir os pés para se distinguirem dos pesões masculinos, do jeitinho que os machões gostam?”. O editor também acentuou este comentário citando as gueixas como vítimas. Outra defensora das alternativas de gênero bronqueou-me com um “ainda bem que não usou a expressão ‘sapatão’ para falar das trans masculinas” numa franca condenação à marchinha carnavalesca “Maria sapatão”.

Outros comentários remetiam aos barefoot evocando a falta de referência à famosa marca revendedora de vinho que homenageia a velha técnica de produção antes feita por pés descalços que amassavam a fruta. Essa passagem também mencionava os chineses “médicos pés descalços”, criados pela Revolução Popular e postos em prática desde 1968.

Uma ex-aluna, hoje professora líder de movimentos emancipacionistas, cutucou lembrando que eu, historiador, deveria ter tecido considerações sobre os escravos proibidos de usar sapatos, então fator de distinção de classe. “Sinceramente, quando a temática afro ganha destaque, seria simpático ter falado disso”, garantia. É claro que não faltaram anotações sobre os indígenas brasileiros que dispensavam o uso de sapatos e o cultivo dessa prática mostrada como resistência aos modos colonizadores.

Na mesma linha, em outra abertura alguém lembrava que “São Francisco fazia questão de sandálias e pelo uso delas proclamar a oportunidade de combate o luxo”. “Faltou falar das (sandálias) ‘franciscanas’ que tanto serviam para homens como para mulheres”, emendava mais uma. E por falar nisso, fui criticado por não mencionar os mocassins inventados pelos Sioux norte-americano e adaptados pelos grandes fabricantes dos anos de 1960 em diante. Os Cheyenne, também dos Estados Unidos, teriam sido o grupo que mais devoção dedicou aos sapatos então enfeitados com missangas e nós especiais, produto dado de presente aos aliados “esqueceu-se, professor?”.

O fato de eu não ter tocado nas botas também causou desassossego “por que você não se referiu às botas? Se esqueceu dos esquimós, dos australianos, dos montanhistas?”. Muito brava outra pessoa dizia “cadê as botas dos bandeirantes e dos beduínos no deserto? E por que só comentou as botas lendárias do gato?”.

Gostei da cobrança musical que alertava “da próxima vez escreva sobre os sapatos e a música, como no caso do grupo Los Hermanos com o sucesso ‘sapato novo”. Aliás busquei informações e me encantei com a variedade de ritmos e gêneros de canções que abordam os pisantes: “no sapato” (Diogo Nogueira); “calcei sapatos novos” (Jerry Adriani); “sapato velho” (Roupa Nova); “sandalha de prata” (Samba Pesado), não faltando inclusive canções para crianças como “um, dois, eu amarro meu sapato” (Johny e amigos”). É claro que também caberiam sucessos de Zeca Pagodinho, Clara Nunes, Elton Medeiros, Raul Seixas entre outros.

Enfim, acho que cheguei a uma conclusão abençoada: por carinhosa que seja a intenção da crônica sempre haverá espaço para complementos, e qual pode ser mais elogioso que o desdobrado de motivos propostos? Sim, posso dizer que levei caneladas e que pisaram no meu calo, mas tão incontidas intervenções, creio, valeram por sugerir continuidade da conversa. Foi dado o chute inicial, aliás, viva as chuteiras (que também ficaram fora do jogo).