Dimitrius Dantas entrevistou para O Globo o filósofo, professor da Unicamp, presidente do Cebrap  e autor de ” Ponto Final – a Guerra de Bolsonaro contra a democracia“. Leitura obrigatória para os interessados em entender e decifrar o presidente Jair Bolsonaro

“Bolsonaro conscientemente quer mudar o assunto das mortes para que ele não seja responsabilizado”

“O ministro Alexandre de Moraes acertou no joelho do Bolsonaro. Sem a central de fake news, Bolsonaro não se sustenta”

Em “Ponto final —A guerra de Bolsonaro contra a democracia”, lançado na sextafeira, o professor da Unicamp e filósofo Marcos Nobre defende que Bolsonaro tem um projeto autoritário cujo objetivo é a ruptura do regime democrático. A chegada da pandemia, entretanto, alterou o plano e levou o presidente a ser ainda mais agressivo com as instituições.

O livro, nos formatos eletrônico e físico, faz parte de coleção de ensaios da editora Todavia sobre o Brasil em meio à pandemia da Covid-19. Ao GLOBO, Nobre defendeu o inquérito das fake news e classificou os ataques de Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal (STF) como uma forma de fugir da responsabilidade na pandemia. — Bolsonaro conscientemente quer mudar o assunto das mortes para que ele não seja responsabilizado. Isso é algo que é a coisa mais pusilânime —diz Nobre.

O senhor começa o livro criticando o discurso de que Bolsonaro é “burro” e “louco”, e defende que o presidente atua com uma racionalidade política. Como ela funciona?

Tratar Bolsonaro de outra maneira que não como um político é uma estratégia que reforça sua imagem de não-político. É o que ele quer passar. É uma maneira que tira sua responsabilidade dos atos que pratica, afinal burros e loucos não podem ser responsáveis pelas burrices e loucuras. Então, é preciso entender a racionalidade do Bolsonaro como político. Isso significa entendê-lo como alguém que tem um firme projeto autoritário. Temos que levar isso muito a sério.

O senhor afirma que, antes da pandemia, Bolsonaro estava numa fase inicial de destruição das instituições. O que caracteriza essa fase?

É colocar um ministro do Meio Ambiente que destrói o meio ambiente, um diretor de uma fundação pensada para lutar contra o racismo que diz que não existe racismo. É inverter o sentido das instituições democráticas. Fazer elas funcionarem ao contrário do que é a sua função. É introduzir no vocabulário político a ideia de que uma ditadura é uma coisa normal, que ela pode ser democrática.

Muitos criminalistas criticam a forma como o inquérito das fake news foi criado no Supremo Tribunal Federal. Como o senhor vê este caso?

O ministro Alexandre de Moraes acertou no joelho do Bolsonaro. Porque sem a central de fake news, Bolsonaro não se sustenta. O ministro mostrou que ele sabe onde acertar, qual é a fraqueza do Bolsonaro.

Mas há questionamentos à constitucionalidade de um inquérito criado de ofício, sem participação do Ministério Público.

Em um momento como esse, não adianta pensar em abstrato. Bolsonaro pratica a política da guerra e montou um governo de guerra. É claro que quem defende a democracia não vai recorrer à violência e à força para afastar Bolsonaro, mas a procedimentos democráticos, a articulações políticas em defesa da democracia. Agora, não dá para imaginar que estamos numa condição institucional normal e que devemos nos pautar por critérios abstratos de como funcionam as instituições. Esse é um momento de clareza, é um momento em que a democracia não está funcionando.

O senhor diz no livro que a postura antissistema é exatamente o que impede Bolsonaro de governar.

Exato. Porque atualmente ele precisa não só dirigir o sistema. Isso é pouco. Numa crise sanitária dessa magnitude, ele precisa reorganizar inteiramente o sistema em função do combate ao vírus. Precisa pegar todo o aparelho do estado, todos os ministérios e remodelá-los de maneira a enfrentar a pandemia. Precisa remodelar a indústria brasileira para fabricar produtos.

Mas por que esses ataques logo agora?

Bolsonaro conscientemente quer mudar o assunto das mortes para que ele não seja responsabilizado. Isso é algo que é a coisa mais pusilânime. Não é que não temos que discutir esses ataques, porque ele de fato quer destruir a democracia, mas o que ele está fazendo agora é confundir as pessoas.

Capa estadao

Capa do Estadão de segunda-feira, 1º de junho, com outra entrevista de Nobre

Para um impeachment, o senhor fala que é necessária uma frente ampla a favor da democracia, incluindo os militares. O que poderia motivá-los a apoiar um afastamento de Bolsonaro?

As Forças Armadas se sentiam excluídas da política de forma injusta e indevida e aproveitaram para voltar ao governo, assim como outros grupos. E não sairão tranquilamente, porque querem ser reconhecidas como um ator político relevante. O que eles querem dizer é: nós temos quadros aptos a servirem a governos e estamos sendo excluídos por pura discriminação.

Por outro lado, essa frente também dependeria da união de forças políticas que, há pouco tempo, eram adversárias, como PT e PSDB.

Bolsonaro se alimenta dessa lógica dos três terços em que nenhum dos três negocia com o outro. Mas essa divisão não é só das forças políticas, é na sociedade. Tem PSDB e tem PT, mas também tem o tio e o sobrinho, o irmão e a irmã. Se essa tendência de aumento de rejeição se confirmar, até o ponto de atingir algo perto de 60%, isso significa que está tendo um movimento na base da sociedade que diz o seguinte: “Pode ser que tenhamos diferenças insuperáveis e que impediram a gente de almoçar juntos no domingo, mas temos que juntar forças contra essa ameaça maior”. E as forças políticas organizadas são obrigadas a ir atrás. Enquanto não há condições objetivas para isso, ele aproveita esse tempo para montar seu governo de guerra. Hoje, Bolsonaro encena ser o único homem livre em um país de confinados.

Marcos Nobre, filósofo e professor da Unicamp