Os pombos mais bonitos que conheço são os da Piazza de San Marco, em Veneza: fortes, bem alimentados, atrevidos não temem se achegar aos turistas que lhes oferecem fartas porções de ração especial. Os mais feios são os de Copacabana que, coitados, sempre inoportunos, esquálidos, sobrevivem de migalhas misturadas ao sal da areia, e são cruelmente espantados pelos banhistas. Os italianos promovem revoadas que fazem a alegria de fotógrafos; os nossos nem alçam altura respeitável e, aiaiai, causam pena.

Em meio a polarização entre belos e opostos, me vi desafiado ao entendimento da distância entre o ideal e a realidade e, perplexo, optei por visitar o labirinto do universo simbólico e das representações. E foi nesse emaranhado que os pombos repontaram como centro de uma discussão que convoca argumentos. Em uma ponta os contextos idílicos que ditam as decantadas aves como divinais, emblemas da pureza amorosa, algo derivado da Bíblia (“inocentes como as pombas, porém espertos como as serpentes” Mateus 10:16). E por falar nas Sagradas Escrituras, muitos ligam a reputação da “pomba da paz” ao registro do Gêneses, no Antigo Testamento. Segundo ensinamentos, depois que a Arca de Noé pousou no Monte Ararate, Noé soltou uma pomba branca que da primeira vez voltou do mesmo jeito que saiu, da segunda retornou com uma folha de oliveira e da terceira não voltou mais. A retomada ad nauseam desta passagem aponta para a escolha do símbolo da concórdia e sobretudo de recomeços.

 

Na contramão de tantas loas, alguns responsabilizam os pombos por portadores de doenças, piolhos, e os percebem implicados em ameaças a telhados, monumentos, logradouros públicos. E não são apenas os urbanos que agenciam prejuízos, pois os de áreas agrícolas tornam-se perigosos, principalmente em plantações de grãos. Mas, deixando-me perder na busca de entendimentos não resisti percorrer caminhos tortuosos com mãos e contramãos. E parcial que sou, justifico-me apoiado em motes poéticos perpetrados por gente do calibre de Vinícius de Moraes (“Os pombos”); “Cecília Meireles (O pombinho”); Mario Quintana (“O pombinho branco”) e tantos outros.

A lista de romances, contos e crônicas sobre “a ave da paz” é longa, a começar por Andersen com a historinha da princesa perdida na floresta e que, em meio a revoada bendita se casa com o príncipe (“A Pomba”). Seguramente entre nossos cronistas a fartura de referências a essas penosas é surpreendente, com destaque a Paulo Mendes Campos (“O pombo enigmático”); Rubem Braga (“O pombo”); Martha Medeiros (“Pombos e a vida na cidade”); Fernando Sabino (“A dança dos pombos”), mas, em meio a tantos, vale distinguir Luís Fernando Veríssimo com o impagável “Os pombos e o encontro marcado”, situando a história de um apaixonado a espera da namorada, sob os olhos vigilantes de um pombo irônico.

Os historiadores sempre têm em mira a relação entre o passado e o presente e, neste sentido, articulei algumas tradições que atravessaram os tempos e, em especial, a força da simbologia contida na “columba pascal” que, associada à Páscoa, desde a Idade Média, é uma das celebrações mais prestigiadas dos cristãos. E há tantos significados internados naquela espécie de bolo que idealmente deve ter a forma de pomba.

Arrolando elementos exaltativos dos pombos, diminuído os ruídos contrários, fico pensando na importância da graça na formulação continuada do imaginário universal. No fundo de mim mesmo mora um romântico, apreciador de traços estéticos combinados com lirismo etéreo e então deixo repontar cintilante o conceito agostiniano de graça – em latim “gratia plena”.

 

Evoco Santo Agostinho com a proposta de graça como consciência tranquilizadora de escolhas ligadas ao livre-arbítrio. E recito silente “ave Maria cheia de graça”… É claro que não me refiro à graça burguesa, acionadora de gargalhadas, e nem à pândega fútil que faz escarnecer e ridiculariza. Pelo reverso, sinto-me progressivamente tomado pelas benesses da arte capaz de inspirar e a reconheço como responsável pelas idílicas pombas.

Pois, é… Somando tantos elogios sinto que por mais evidente que seja a ciência com seus ensinamentos, a força da memória exaltativa é tamanha que resta aprender a separar o joio do trigo. É claro que em nível razoável, sob o crivo do razoável, não cabe anular os alertas contra malefícios potencializados na realidade dos pombos, mas, contraponto importante, como esquecer da construção simbólica que metamorfoseia o bem e, aristotelicamente, aponta belo, bom, útil. É óbvio que não se pretende resolver este dilema nas parcas linhas de uma crônica, mas, não há como deixar de lado a força dos pombos, plasmados em nosso imaginário. Talvez o Espírito Santo seja a mais alta representação dessas aves, e com certeza, precisamos dele para ajudar na aceitação dessa ambiguidade.