Santo Agostinho alertava para a validade de leituras alegóricas da Bíblia como o casal que deu origem à construção do mito mais antigo da civilização cristã, “a origem da raça humana”

Num repente, meu pensamento voou. Soltou-se. flanou perdido numa tarde deslumbrante, e o deixei vagar. E culpo a brisa morna que alentava conversas pessoais, dessas que abrigam bobagens, curiosidades tolas. Lembrei-me, contudo, de um conselho que recomendava atenção para os devaneios, repetições, lembranças antigas, músicas que do nada nos vêm à cabeça. A inexistência de gratuidade na memória, contudo, recomenda cuidados com os tais “pensamentos repentinos”. De toda forma, o gatilho para tais abstrações derivou de uma constatação despregada de utilidades. Imaginem que viajei para um espaço meio mítico, meio louco, meio bíblico: a história de Adão e Eva…

E num lampejo constatei que o primeiro casal não teve enredo, infância, adolescência, nem sequer se enamoraram.  Nasceram adultos prontos, e só. Para um historiador, é difícil imaginar alguém sem pretérito explicativo de realidades. Impossível. Mais difícil ainda supor que deles adviria toda a História da humanidade – olhem que falamos de cerca de 200 gerações. Preciso antes dizer que tenho critérios para considerar a Bíblia, aliás, toda vez que falo desse Texto Sagrado apelo para Santo Agostinho (sempre ele) que alertava para a validade de leituras alegóricas da Bíblia. É exatamente com olhar crítico-literário que presto atenção no casal que deu origem à construção do mito mais antigo da civilização cristã “a origem da raça humana”. Pensando que mitos são criações legendárias que dispensam lógica, percebo-os capazes de presenças metafóricas à moda dos gregos, romanos e demais. É exatamente na resistência dessas narrativas que repousa minha perturbação sobe o suposto Eden.

Cain e Abel, rebentos geniosos e briguentos

Que Adão e Eva representam princípios, é fato firmado. O primeiro casal é fio original de uma variedade de problemas que atravessam tempos, carregando dilemas do nosso presente. Vale, contudo, teorizar uma questão fundamental: se Deus Pai criou o homem à sua imagem e semelhança, por que teria escolhido se representar pelo sexo masculino? Aliás, regozijei dia desses quando ouvi uma feminista cristã, radical, dizendo que, com medo de errar, Deus fez um rascunho – o homem – e só depois propôs sua obra prima – a mulher que, segundo a narradora, pediu ao Divino para não desprezar o esboço. De todo modo, frente a expulsão do Paraíso persiste a pergunta: de quem é a culpa da sedução? E daí progredi para outros temas importantes, algo do tipo, se os dois transgrediram juntos, por que a tradição culpa apenas ela? Mais questões brotaram: por que associamos a expulsão à degradação, traição, desconfiança? Não poderia ser diferente?

A palavra “recomeço” brilhou no céu de meus questionamentos apontando para a boniteza da história do casal que, amaldiçoado, na condição de mortais, teve que aprender viver juntos. Viver, diga-se: ganhar o próprio sustento, padecer dramas, ter história, enfim. Constituir família, para eles deve ter sido tarefa complexa, principalmente se considerarmos os dramas de rebentos geniosos e briguentos como Cain e Abel. Na medida em que argumentos da vida comezinha avançavam, notei uma reversão nos meus conceitos estabelecidos. Sim falo de uma história de amor construída na cumplicidade, tudo depois da bronca do Deus-Pai. A suposta desgraça ou castigo os desafiou a uma vida solidária e juntos. Lembro-me de um livro lido anos atrás que decretava a trajetória de Adão e Eva como a primeira história de amor da humanidade. Bruce Feiler, o autor, ressaltava a inequívoca noção de partilha entre um casal que se redime de culpa duplamente assumida.]

Casal gorducho e feliz de Fernando Botero

O tema nascido da aparente espontaneidade foi ganhando estrada e mostrando potencial sutil e tão impertinente que se infiltrou nas artes, na filosofia, na tradição popular. É lógico que hoje em dia não há lugar para o fabulário simplista que nega a evolução das espécies, mas fico imaginando porque na cultura ocidental, por exemplo, a dupla reponta através dos séculos. E olha que falamos de autores como Shakespeare, Keats, Mark Twin, Hemingway, Saramago, Machado de Assis e lembremos que nem Bob Dylan escapou. Na pintura, Rafael, Rembrandt e principalmente Michelangelo se projetaram de maneira a desafiar os tempos permitindo a retomada do tema até em nosso carnaval. E que dizer do adorável casal “gorducho” proposto por Botero?

Fechei a conversa íntima sobre Adão e Eva presentificando outros debates como machismo x feminismo; complacência x julgamento; culpa X perdão… E foi assim que muita coisa decorreu de uma nesga de memória que consentiu concluir por uma lição sobre o amor sobrevivente da adversidade. E como é difícil falar de amor em tempos que Balman chama de “líquidos”… Ainda bem que Adão e Eva estão vivos na memória e fertilizam o fundamento do amor. Do amor transcendente e trabalhado nos dilemas da vida real.