A versão mais simplista insiste em afirmar que a iniciativa da ditadura venezuelana para anexar a maior parte da Guiana Inglesa não passaria de uma cortina de fumaça para “reeleger” Nicolás Maduro presidente em 2024. Seria a estratégia pensada a partir de 18 de outubro passado quando o governo dos Estados Unidos anunciou a suspensão temporária das sanções ao petróleo, gás e ouro venezuelanos. Seria um sinal concreto ao acordo alcançado pelo governo de Maduro com a oposição para estabelecer garantias eleitorais em 2024.

“Os Estados Unidos celebram a assinatura de um acordo na rota eleitoral entre a Plataforma Unitária e os representantes de Maduro. Dessa maneira, o Departamento do Tesouro dos EUA autoriza transações relacionadas ao setor de petróleo, gás e ouro da Venezuela, além de eliminar a proibição do comércio secundário desses recursos.”

Uma primeira licença autoriza transações relacionadas com o setor de petróleo e gás por um período de seis meses. A segunda dá luz verde às operações com a Minerven — empresa estatal venezuelana de mineração de ouro — que, segundo o Tesouro dos EUA, permitirá reduzir o mercado negro. Além disso, duas licenças foram modificadas para eliminar a proibição de negociar no mercado secundário de determinados títulos soberanos venezuelanos, assim como as dívidas e ações da PDVSA, a petroleira estatal venezuelana.

Essa iniciativa não passa do pragmatismo de mercado ao governo americano diante da crise energética em que vive o ocidente em função dos conflitos como a invasão da Ucrânia pela Rússia, a beligerância com o Irã e a retomada do desenvolvimento chinês, quiçá a maior economia desse planeta. A Venezuela possui a maior reserva certificada de petróleo do mundo: 302,8 bilhões de barris. Sem falar em outras reservas como ferro, diamante e ouro.

Venezuela possui a maior reserva certificada de petróleo do mundo: 302,8 bilhões de barris

Em 2015, a ExxonMobil descobriu petróleo na área reivindicada pela Venezuela. Essa disputa se arrasta desde o Tratado de Tordesilhas de 1494, celebrado entre o Reino de Portugal e a Coroa de Castela para dividir as terras “descobertas e por descobrir” por ambas as Coroas fora da Europa. O Brasil se expandiu quando a coroa portuguesa decidiu desrespeitar o Tratado que havia traçado uma linha que divide a região do rio Esequibo.

Eis um resumo cronológico:

1810 –– A Venezuela declara sua independência da Espanha no território que em 1777 correspondia à Capitania Geral da Venezuela. Essa declaração incluía a área que chegava à margem esquerda do rio Essequibo;

1814 –– Em plena guerra de independência, os britânicos tomam posse das colônias de Demerara, Berbice e Esequibo, que, em 1831, passaram a fazer parte do que foi chamado de Guiana Inglesa, território a leste do rio Essequibo;

1840 –– Como o limite ocidental da Guiana Inglesa não estava definido, o Reino Unido encarregou Robert Shomburgk, um explorador alemão. O resultado ainda hoje é conhecido como Linha Shomburgk, que localiza a fronteira da Venezuela na foz do rio Orinoco. Em 1841, a Venezuela reagiu afirmando que lhe foram tirados seus territórios localizados a oeste de Esequibo;

1850 –– Reino Unido e Venezuela concordaram que a área disputada não seria ocupada e a definiram como território disputado.

1897 –– Com a mediação dos Estados Unidos, a Venezuela e o Reino Unido concordaram em respeitar o resultado de uma arbitragem internacional com participação da Inglaterra, da Rússia e dos Estados Unidos, este último representando a Venezuela;

1899 –– A sentença arbitral de Paris concede à Grã-Bretanha a soberania sobre toda a área em disputa e deixa à Venezuela uma porção de terra ao sul e a foz do rio Orinoco;

1962 –– A Venezuela denunciou perante a Organização das Nações Unidas que havia vícios no procedimento de arbitragem e deixou claro que considerava a decisão da sentença nula e sem efeito;

1966 –– É assinado o Acordo de Genebra, no qual o Reino Unido reconhece que existe uma disputa por aquele território. Nesse mesmo ano, a Guiana alcançou a sua independência e iniciaram-se negociações diretas entre os dois países sobre a disputa territorial;

1970 –– Venezuela, Guiana e Reino Unido aprovaram em 18 de junho o Protocolo de Porto Espanha, que estabeleceu um prazo de 12 anos;

1986 –– As partes recorreram novamente à ONU para desbloquear a disputa e chegar a acordo sobre a nomeação de um mediador. A partir desse momento, foram nomeados três oficiantes;

2015 –– A ExxonMobil descobriu petróleo na área Esequibo;

2018 –– A Guiana processou a Venezuela perante o Tribunal Internacional de Justiça com base na sentença arbitral de Paris de 1899;

2020 –– Em dezembro, o Tribunal Internacional de Justiça decidiu que tinha jurisdição para julgar o caso, mas a Venezuela não reconhece.

2021 –– O governo da Venezuela emitiu uma declaração reafirmando o domínio sobre o Esequibo. A Guiana reagiu a tal declaração considerando-a uma ameaça à sua soberania e integridade territorial.

Como podem observar, não se trata de bravata intempestiva como a grande imprensa insiste me divulgar.

O governo dos Estados Unidos anunciou em 18 de novembro passado a suspensão temporária das sanções ao petróleo, gás e ouro venezuelanos.

A medida foi adotada em resposta ao acordo alcançado pelo governo de Nicolás Maduro com a oposição para estabelecer garantias eleitorais tendo em vista as eleições presidenciais de 2024.

“Os Estados Unidos celebram a assinatura de um acordo na rota eleitoral entre a Plataforma Unitária e os representantes de Maduro. Dessa maneira, o Departamento do Tesouro dos EUA autoriza transações relacionadas ao setor de petróleo, gás e ouro da Venezuela, além de eliminar a proibição do comércio secundário desses recursos.”

Uma primeira licença autoriza transações relacionadas com o setor de petróleo e gás por um período de seis meses. A segunda dá luz verde às operações com a Minerven — empresa estatal venezuelana de mineração de ouro — que, segundo o Tesouro dos EUA, permitirá reduzir o mercado negro.

Além disso, duas licenças foram modificadas para eliminar a proibição de negociar no mercado secundário de determinados títulos soberanos venezuelanos, assim como as dívidas e ações da PDVSA, a petroleira estatal venezuelana.

Nos anos 70, os venezuelanos tinham o maior poder de compra entre os países América Latina – quase três vezes maior que o dos brasileiros -, segundo um índice da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Esse cenário durou até a década de 1990.

Em 2014, a Venezuela entrou em recessão econômica e, em 2015, a taxa de inflação havia atingido o valor mais elevado da história do país. O governo atribui a crise não somente à queda dos preços do petróleo – de 110,53 dólares, em 2013, para 57,49, em 2016, mas também ao boicote externo.

Celso Amorim foi conversar com Nicolás Maduro

Hugo Chávez venceu a eleição presidencial de 2006 e tinha como um dos seus objetivos unir todos os partidos que apoiavam a chamada Revolução Bolivariana.

Em maio de 2009 Chávez estatiza 60 empresas ligadas à produção de petróleo

Nicolás Maduro

Sindicalista como motorista do metrô de Caracas, foi ministro dos Negócios Estrangeiros de 2006 a 2013. Assumiu interinamente a presidência da República em 2012, logo após a vitória eleitoral de Hugo Chávez, em razão da grave enfermidade do presidente eleito. Chávez faleceu em 5 de março de 2013, e novas eleições foram convocadas. Em 14 de abril de 2013, Maduro foi eleito presidente para cumprir um mandato integral. Acabou reeleito em 2018, num pleito controverso e não reconhecido pela oposição e pela comunidade internacional, com muitos países e órgãos supranacionais não admitindo mais sua legitimidade como presidente.

Após a reeleição, diversos países anunciaram sanções econômicas contra a Venezuela. Em maio de 2018, Trump proíbe que cidadãos e entidades com presença nos Estados Unidos comprem novos títulos da dívida e outros ativos venezuelanos.

Em agosto de 2017 havia sido formado no Peru o Grupo de Lima por chanceleres de países das Américas com o objetivo declarado de “abordar a crítica situação da Venezuela e explorar formas de contribuir para a restauração da democracia naquele país através de uma saída pacífica e negociada”. Na ocasião, representantes de 12 países americanos (Argentina, Brasil (Temer), Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Honduras, México, Panamá, Paraguai e Peru) firmaram o documento no qual definiu sua posição acerca da “situação crítica na Venezuela”, condenando a existência de “presos políticos”, a “falta de eleições livres” e a “ruptura da ordem democrática na Venezuela”. Além disso, o grupo manifesta sua “preocupação com a crise humanitária” venezuelana.

A partir de janeiro de 2018, Guiana e Santa Lúcia se juntaram ao grupo. A Bolívia aderiu em dezembro de 2019. A Argentina se retirou em 2021. No mesmo ano, o Peru, país-sede do grupo, se retirou. Os Estados Unidos, embora não integrem oficialmente o grupo, participam das reuniões. Essa “arrogância” é exibida mais uma vez nesse final de ano quando realizam ostensivamente manobras militares com o “exército” da Guiana.

Desde aquela época o Grupo de Lima decidiu “reduzir o nível das relações diplomáticas” e agir para bloquear os fundos internacionais da Venezuela. O secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), Luis Almagro, declarou: “não reconhecemos Nicolás Maduro” como presidente da Venezuela. Em 5 de junho de 2018, a OEA, com 19 votos a favor, 4 contra e 11 abstenções, aprovou uma resolução declarando ilegítima a reeleição de Maduro e iniciando o procedimento para suspender a Venezuela do organismo.

2023

É secular a disputa pelo território de Esequibo entre Venezuela e Guiana. Desde o fim do século 19, está sob controle da Guiana. A região representa 70% do atual território da Guiana e ali moram 125 mil pessoas.

A Guiana afirma que é a proprietária do território porque existe um laudo de 1899, feito em Paris, no qual foram estabelecidas as fronteiras atuais. Na época, a Guiana era um território do Reino Unido.

Tanto a Guiana quanto a Venezuela afirmam ter direito sobre o território com base em documentos internacionais.

Maduro se encontra com Putin em Moscou

Já a Venezuela afirma que o território é dela porque assim consta em um acordo firmado em 1966 com o próprio Reino Unido, antes da independência de Guiana, no qual o laudo arbitral foi anulado e se estabeleceram bases para uma solução negociada.

Em 2015, a disputa ficou mais acirrada, pois a companhia americana ExxonMobil descobriu de campos de petróleo na região.

A Guiana levou a questão à Corte Internacional de Justiça e ao Conselho de Segurança da ONU. O atual Secretário-Geral António Guterres determinou que a controvérsia deveria ser submetida à CIJ, em razão da falta de progresso atingida pelos bons-ofícios.

A CIJ entendeu que ela teria jurisdição para analisar o caso e determinou que o escopo material do exercício jurisdicional se limitaria a analisar a validade da decisão de 1899 sobre a fronteira entre a Guiana Britânica e a Venezuela, como forma de dar uma solução definitiva à disputa da fronteira terrestre entre os dois países. A Guiana solicitou medidas provisórias à CIJ para que ela ordenasse a Venezuela a não prosseguir com o referendo.

Maduro tentará encontrar-se com Xi Xinping como o fez em 2015

A CIJ emitiu uma ordem em 1 de dezembro de 2023, estabelecendo dois pontos: inicialmente, decidiu que o direito à soberania da Guiana sobre a região é plausível e que, existe, de fato, risco de dano irreparável e urgência na situação. Logo, ordenou, sem seguir diretamente os pedidos da Guiana, que a Venezuela deveria “abster-se de tomar qualquer ação que possa modificar essa situação”, e que ambos os Estados deveriam “abster-se de qualquer ação que possa agravar ou ampliar a disputa perante a Corte ou torná-la mais difícil de resolver”.

A Venezuela realizou a consulta alegando ser parte do seu domínio exclusivo, muito embora seus efeitos possam eventualmente atingir a terceiros e, nesse ponto, ser questionada. Juristas afirmam que a Venezuela não violou diretamente as medidas outorgadas em 1 de dezembro ao fazer o referendo.

Porém, deve-se observar os próximos passos deste país para que essa situação de ‘legalidade’ não se altere. Afinal, a mera realização de um referendo, a priori, não é ilegal e tampouco significa, em si, a criação do estado de Essequibo, na Venezuela, ou mesmo a sua anexação. Vale dizer que qualquer ato militar nesse sentido seria ilegal de acordo com o Direito Internacional, que proíbe o uso da força desde 1945 para esse fim, como bem se pode recordar da tentativa iraquiana em anexar o Kuwait em meados dos anos 1990, a qual fora rechaçada pela ONU, culminando na Guerra do Golfo.

Pode-se concluir que não deverá ocorrer qualquer aventura militar por iniciativa de Maduro. Até porque Maduro tem se cacifado politicamente e nesse final de semana ele deverá se encontrar com o russo Putin e o chinês Xi Jinping.