Revolução cubana e o ano de 1968 que ainda não acabou são apenas dois exemplos de uma juventude que no século passado lutou para transformar o mundo e construir um projeto de vida mais justo e humano. O escritor uruguaio Eduardo Galeano traça um perfil de um sonho que até hoje, apesar de seus equívocos, incomoda o império que vive ao lado (foto de Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir com Fidel, em Cuba)

Seus inimigos não dizem que, apesar de todos os pesares, essa ilha sofrida mas obstinadamente alegre gerou a sociedade latino-americana menos injusta.

Seus inimigos dizem que foi rei sem coroa e que confundia a unidade com a unanimidade.

E nisso seus inimigos têm razão.

Seus inimigos dizem que, se Napoleão tivesse tido um jornal como o Granma, nenhum francês ficaria sabendo do desastre de Waterloo.

E nisso seus inimigos têm razão.

Seus inimigos dizem que exerceu o poder falando muito e escutando pouco, porque estava mais acostumado aos ecos que às vozes.

E nisso seus inimigos têm razão.

Fidel e Hemingway

Ernest Hemingway permaneceu em Cuba após a revolução

Mas seus inimigos não dizem que não foi para posar para a História que abriu o peito para as balas quando veio a invasão [da Baía dos Porcos, em 1961], que enfrentou os furacões de igual pra igual, de furacão a furacão, que sobreviveu a 637 atentados, que sua contagiosa energia foi decisiva para transformar uma colônia em pátria e que não foi nem por feitiço de mandinga nem por milagre de Deus que essa nova pátria conseguiu sobreviver a dez presidentes dos Estados Unidos, que já estavam com o guardanapo no pescoço para almoçá-la de faca e garfo.

Fidel e Malcolm X

Fidel e o Malcom X

E seus inimigos não dizem que Cuba é um raro país que não compete na Copa Mundial do Capacho.

E não dizem que essa revolução, crescida no castigo, é o que pôde ser e não o quis ser. Nem dizem que em grande medida o muro entre o desejo e a realidade foi se fazendo mais alto e mais largo graças ao bloqueio imperial, que afogou o desenvolvimento da democracia a la cubana, obrigou a militarização da sociedade e outorgou à burocracia, que para cada solução tem um problema, os argumentos que necessitava para se justificar e perpetuar.

Fidel e Angela Davis

Fidel com Angela davis

E não dizem que apesar de todos os pesares, apesar das agressões de fora e das arbitrariedades de dentro, essa ilha, sofrida mas obstinadamente alegre, gerou a sociedade latino-americana menos injusta.

E seus inimigos não dizem que essa façanha foi obra do sacrifício de seu povo, mas também foi obra da pertinaz vontade e do antiquado sentido de honra desse cavalheiro que sempre se bateu pelos perdedores, como um certo Dom Quixote, seu famoso colega dos campos de batalha.

Fidel e Allende

Fidel e Salvador Allende, deposto pelos militares chilenos com apoio da CIA

Do livro “ESPELHOS, uma história quase universal“, tradução de Eric Nepomuceno, onde Eduardo Galeano analisa a história da humanidade – de sua origem aos dias de hoje – sob a ótica dos desvalidos, dos esquecidos da história oficial.