Um palimpsesto medieval escondia um texto de Arquimedes

O ano virou. Janeiro se foi rapidinho carregado pelas enxurradas que sucederam calores nunca sentidos. As férias se despediram deixando porteira aberta para um 2024 que cavalga no trote incansável das continuidades. No ar, flana a promessa de dificuldades e ameaças de desastres climáticos somados às muitas guerras, algumas desconhecidas, intermináveis. Racismo, machismo, fascismo, terrorismo, fome, desigualdades, tudo junto trança ameaças de agravamentos projetados em proporção geométrica. Sem cerimônia, depois da efusividade das festas, evaporam-se os sons e os tons de renovações ou viradas. Papai Noel por mais um turno se despediu exaurido de esperanças, ainda que certo do eterno retorno. Quem sabe um dia ele consegue alguma coisa. O calendário é cruel demais e sequer permite vibrar por muito tempo a noção do inédito, das mudanças ou a ilusão dos tais novos tempos. E vitaminadas voltam as continuidades assombrando os meses seguintes.

Tentando não aposentar restos de utopias birrentas, me veio à cabeça uma palavra intrigante que aprisiona sentidos esdrúxulos. Creio que se perguntasse o que significa “palimpsesto” poucos saberiam. Mesmo estudantes de história, paleontólogos, arqueólogos, teriam dificuldades. O termo caiu em desuso já no século I d.C e agora, quando desarquivado, demanda consultar dicionários. Palimpsesto, contudo, foi recurso muito usado, em particular na antiguidade oriental. Sabe-se que na China, lá pelo ano 105, T’sai Lun aplicou cera sobre uma camada de fibras de bambu e criou o ancestral do papel. A boa absorção de tinta ou nanquim revolucionou a prática da escrita que, contudo, ficou limitada àquele império por cerca de 600 anos.

Grosso modo, pode-se dizer que palimpsesto é/era uma espécie de suporte na base de couro de carneiro ou casco de algumas árvores, papiro, que servia de apoio para registros importantes, escritas de textos religiosos ou de costumes, mapas que, depois de usados, eram invariavelmente raspados para dar lugar a outros registros tidos como mais importantes, mais úteis ou atualizados. É fácil imaginar a dificuldade que existia antes da popularização do papel. O difícil é supor o que se perdeu desses conteúdos que, certamente, diriam muito do andamento das sociedades.

Para reuso, os palimpsestos era raspados com pedra pome

Sinceramente, quisera apagar alguns acontecimentos do ano decorrido. Se pudesse rasparia a polarização que impregna ódio, tanto à esquerda como à direita, fazendo com que qualquer fato ou acontecimento seja enviesado para um lado ou para outro. E nisso há métodos, às vezes sutis, às vezes truculentos, sempre com gana de destruição do adversário visto como inimigo. Pensando que a corrida eleitoral deste ano já deu largada, imagino acirramentos ferozes, muitos baseados em mentiras e multiplicações de mensagens com vocação de rompimentos dramáticos. Pois é, quisera raspar tudo e reescrever recomeços sem rancores, mágoas e vinganças. No lugar, em vez de linhas que marcaram desencontros, pretenderia reeditar loas de paz, fraternidade, e redesenhar entendimentos humanizados na essência da justiça social e dos direitos humanos. Por certo, não seriam conquistas ingênuas, feitas de desejos românticos e intenções desprevenidas. Sei bem da tirania do mal e da memória de desajustes que dificilmente serão raspados como no tempo dos palimpsestos.

É lógico que o uso do papel e da tinta se democratizou consoante a todo aparato de divulgação das ideias e propostas políticas. A sagração do princípio que reza “todos iguais perante a lei”, no entanto, precisa se mostrar esperto ao ponto de desmentir “uns mais iguais que outros”. Junto com o fim dos palimpsestos a crescente facilidade de escrita favoreceu a proliferação de ideias e correntes e generalizou o direito à opinião pública. Mas o percurso é tortuoso e tem sido seletivo, manipulado. Estamos ainda em processo de aquisição de conhecimentos de suas possibilidades, algo como crianças em fase de alfabetização, ainda aprendemos a gramática política que, contudo, a cada dia se mostra com regras mais cavernosas.

É verdade que a educação é a porta da escola, mas curiosamente ela não tem estado aberta a todos. E, pior, há os que fogem. O letramento político se faz junto com o direito de opinião, mas subjacente ao exercício de tal conquista, mecanismos conservadores preferem deixar fora dos estabelecimentos de educação aqueles que não são lá tão iguais. Sinceramente, fico intrigado com o poder que certos bandidos e asseclas têm para controlar os meios de comunicação. E as mídias eletrônicas estão aí soltas, sem regulação, dispostas à gente que não quer se aparelhar e aprender e assim sustentam plataformas que funcionam com novos palimpsestos adoidados, onde apagam sonhos de progresso coletivo e reproduzem os mesmos textos antigos… antigos e atrasados. E as Fake News crescem como argumentos que se valem inclusive da Inteligência Artificial para garantir o caminho da desgraça coletiva. Frente a essas ponderações ralas me permito perguntar: você sabe o que é palimpsesto. Qual o seu uso moderno?