Cecília Meireles perguntou: “em que espelho ficou perdida minha face?” O mundo seria assim mesmo?
Dia desses, o sol nascia enquanto eu me sentava com meu café e o jornal matinal, um ritual diário que, naquela manhã, carregava um peso diferente. As manchetes eram como dardos: sessenta e três conflitos armados pelo globo, enquanto nossa atenção míope se fixava em apenas um ou dois. O mundo parecia um vasto incêndio, e nós, presos em gaiolas douradas.
Minha mente, já calejada de ler páginas teóricas, começaram a questionar políticas friamente calculadas dividindo famílias, economias vorazes esmagando sonhos e pulverizando esperanças, preconceitos ancestrais envenenando a convivência e a natureza, essa mãe maltratada, consumida vorazmente, dia após dia, enquanto nós, cegos por indiferenças. O mais aterrador é a sensação de que tudo isso se tornara banal, normal, aceitável, apenas “mais um dia” em um planeta condenado por nossa própria apatia.
Foi então que ouvi uma batida suave na porta. Uma menina, talvez com uns nove anos, em um vestido azul-turquesa, com um caderninho nas mãos. Seus olhos, grandes e curiosos, carregavam uma pureza que o mundo ainda não havia corrompido. “Posso fazer uma pergunta importante?”, disse com uma voz que ainda acreditava, com fé inabalável, no poder transformador das palavras. Seu dever de casa era simples, mas brutalmente profundo: entrevistar adultos sobre como alcançar a paz mundial.
Engoli em seco. Ali estava eu, um historiador aposentado, ex-professor universitário, pessoa que poderia se orgulhar de tantos livros lidos, completamente desarmado diante da simplicidade brutal, quase violenta, daquela pergunta. A máscara de intelectual pesou em meu rosto surpreso. “Bem, eu… acabaria com todas as armas”, escapei, engolindo o gosto amargo da mentira, daquela solução vazia, na língua. A jovem anotou cuidadosamente, mas seus olhos – grandes, castanhos, implacavelmente honestos – sugeriam que ela esperava mais. E eu também. Eu esperava mais de mim.
O resto do dia passou como um pesadelo acordado. Dois versos ecoavam como um refrão de culpa, martelando cada pensamento. O de Drummond, escrito sob os grilhões da ditadura varguista, em uma era de silêncio imposto, de vozes sufocadas: “Quisera ser uma bomba e com essa bomba romper o silêncio…”. Um clamor por explosão, por ruído, por uma ruptura desesperada contra o mutismo cúmplice. E, em contrapartida, a canção de Fagner, na voz dilacerante e visceral de Ney Matogrosso: “O que me resta é só um gemido”. Dois gritos de revolta, separados por décadas, mas unidos na mesma angústia paralisante que agora me consumia, me asfixiava.
Essa angústia, aliás, não era apenas um eco do passado. Ela ressoava com força no presente. Pensei, por exemplo, nas manchetes que abordavam a recente carta de Donald Trump ao presidente Lula, tratando do “tarifaço”. Era um lembrete contundente de como as tensões globais se manifestam em ações concretas que impactam a vida de milhões, adicionando mais uma camada a esse cenário de incertezas e desassossego. A própria ideia de um “gemido” ganha nova dimensão quando confrontada com a complexidade das relações internacionais e as decisões que moldam a economia e a política global, como as implicadas em um tarifaço.
O tarifaço provoca manifestações porque impacta a vida de milhões
Na madrugada seguinte eu me vi encarando o vazio da tela do computador e o dever de dizer algo. A jovem menina, sem querer, havia exposto minha inoperância essencial. Eu poderia descrever todos os males do mundo com pretensão didática, como um médico que diagnostica a doença, mas não encontra a cura. Eu era incapaz de propor uma única solução verdadeira, palpável, realizável. Quando foi que desistimos de tentar mudar as coisas? Lembrei-me de Cecília Meireles perguntando “em que espelho ficou perdida minha face?”, e fui além: quando aceitamos, com uma resignação covarde, que o mundo seria assim mesmo?
A resposta não veio como uma epifania grandiosa, mas como um pequeno clarão de lucidez, um fio de luz na escuridão da minha própria cegueira. Talvez a paz comece justamente com a coragem de encarar perguntas difíceis. Talvez o primeiro passo seja admitir, com humildade, que não temos respostas prontas, mas nos recusamos, obstinadamente, a parar de perguntar. A não deixar que o silêncio vença. Aquela jovem menina me devolveu algo que eu havia perdido há muito tempo: a capacidade de me indignar verdadeiramente. De não aceitar o inaceitável. De acreditar que podemos – que devemos – fazer melhor. Sua tarefa escolar se revelou a lição mais importante, mais dolorosa e mais transformadora que recebi em anos. E eu, que em toda a minha vida me vi como o mestre, fui humildemente relegado ao papel crucial de aprendiz. E ali, na quietude da contemplação, compreendi que a verdadeira bomba não era de destruição, mas de luz: a que explodia o silêncio da minha própria alma. E entendi a necessidade de ampliar meu gemido. É por isto que escrevo!
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