Minha hora favorita é a madrugada, mas a madrugada dos que começam o dia, não dos que alongam a noite. O silêncio, a mansa espera da luz, o café quente… Arrumado, aguardo o jornal chegar. O intervalo entre o despertar e a leitura das notícias sugere meditações sutis, coerentes com a cena. Hoje não foi diverso, dei céu a uma pergunta que, afinal, faz sentido na altura de nossas vidas políticas: que tempo vivemos?! E colocando a questão coletiva no presente do indicativo me olhei com uma dúvida fatal: estou sendo correto comigo mesmo?!

Devagar, no pulso dos minutos mais recônditos, veio-me à cabeça um poema de Brecht “eu vivo em tempos sombrios”, e minha memória fez repetir versos que fugiam do esquecimento “uma linguagem sem malícia é sinal de estupidez/ uma testa sem rugas é sinal de indiferença/ aquele que ainda ri é porque ainda não recebeu a terrível notícia”. E a sequência me desafiava “que tempo são estes, quando falar de flores é quase um crime/ pois significa silenciar sobre tanta injustiça”. Pronto, estava dada a música para dançar à beira do abismo.

Brecht: “eu vivo em tempos sombrios “

Confesso que tentei mudar de trilha, mas não deu certo. Drummond se me avassalou com “nosso tempo” e passei a ritmar soturno “esse é tempo partido/ tempo de homens partidos/ em vão percorremos volumes/ viajamos e nos colorimos/ a hora pressentida esmigalha-se em pó na rua/ os homens pedem carne, fogo, sapatos” e doía prosseguir “as leis não bastam/ os lírios não nascem da lei/ meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra”. E então vi alargada a pergunta: qual meu posto neste tempo de “homens partidos”? Dei um giro em meu passado recente e comecei uma briga que implicava a palavra “silenciar”. Ah, como é intragável o veneno que se esconde na combinação de letras que contornam o “eu” e o “outro”. Silenciar, recolher-se, no mínimo me aproxima da alienação e, então, como me conciliar?

O historiador que mora em mim exigiu a costura do passado, e nessa estrada resenhei minhas atitudes com pretéritos presentes. Tenho me silenciado para evitar mais rompimentos, e calado me retiro de absurdos imponderáveis. Caminho quieto, apartado de oposições, só falando com meus pares, mas a trança dos dois poemas mais e mais me provocava: estou certo? É correto deixar os acontecimentos como estão? Que posso mudar ficando comigo mesmo?

Drummond: “esse é tempo partido/ tempo de homens partidos”

Respirei fundo quando jornal chegou e fui a ele ainda com as palavras de Drummond gemendo versos “escuta o horrível emprego do dia em todos os países de fala humana/ a falsificação das palavras pingando nos jornais”. Ilusão tola achar que teria fugas, pois, pelo reverso, constatei pelas notícias, uma depois de outra, que o meu recolhimento me justificava. Foi assim que cheguei às páginas da cultura e li um artigo sobre Clarice Lispector acusada de alienação. A sequência do texto puxava outra menção, agora devotada a uma referência feita pelo “irmão Henfil”. O traço radical do chargista desenhava um enterro de apoiadores do golpe civil militar de 1964. Entre os “mortos” alguns ícones maltratados pelo inesquecível pincel: Elis Regina – pelo famoso episódio em que cantou o Hino Nacional nas Olimpíadas Militares – o próprio Drummond e Clarice, ambos acusados de alheamento e enterrados com a assinatura de Henfil.

Até Clarice Lispector foi enterrada por Henfil

Conclui que mesmo sem me opor de maneira desbragada tenho marcado meu território, e assim me vacinei contra a loucura do mundo enfrentando os mesmos versos de Brecht “dizem-me: come e bebe/ fica feliz por teres o que tens/ mas como posso comer e beber/ se a comida que eu como, eu tiro de quem tem fome?/ se o copo de água que eu bebo, faz falta a quem tem sede?/ mas apesar disso, eu continuo comendo e bebendo”. Sabe, se pudesse dialogar com Brecht diria que é o que me resta, e se pudesse mandar recado para Henfil pediria para não me enterrar ainda. Preciso de um tempo comigo mesmo, é questão de respiro. Silente, sim; alienado, não!