Zuenir Ventura referia-se ao ano 1968 como inacabável. Eram tantos os acontecimentos destacáveis que parecia não caber no calendário regular, tinha que continuar. Inicialmente, pensei parafrasear o grande jornalista, mas optei pelo caminho inverso: 2022 o ano que poderia acabar já. Tantos são os tormentos que nos sentimos esgotados, ansiosos, aspirantes apressados dos tais “novos tempos”. Mesmo sabendo que 2023 será de lascar, mais que nunca, começar de novo torna-se objeto de desejo. Sobretudo, o longo período eleitoral deste ano-secular implicou escolhas políticas que dominaram o espaço público. As mazelas nacionais jogadas em nossos rostos nos enojaram, exigindo atenções a temas duros.

O justificado processo seletivo, de certa forma, isolou alguns debates característicos dos ciclos rotineiros, e se isso fez falta como lenitivo, provocou ponderações agora cabíveis. Em termos culturais, o saci – que tem celebração marcada dia 31 de outubro, amanhã – foi um desses casos escamoteados. Minha eterna busca de positividades, contudo, permitiu questionar se não haveria um lado bom nisso. Brincando de tudo-bem, imaginei que a ausência dos retumbantes festejos pudesse dar vazão a certos questionamentos que, sim, precisam ser reavaliados. Numa rápida contabilidade me perguntei: quais seriam os temas mais importantes para pensar o saci hoje? Como aproveitar o silêncio nacional afeito àqueles folguedos?

Talvez de maneira injusta, tenho sido crítico ácido da aproximação do significado do nosso “dia do saci” à oposição do Halloween norte-americanizado ou, em casos mais sofisticados, ao Dia dos Mortos no México”. Acho tais abordagens simplistas, bobagem sem propósito e até depreciativa de nossa autonomia cultural. Mas, por enquanto, este tema pode aguardar oportunidade. O que mais me sensibiliza neste momento é o uso simplificado de uma figura espetacularmente significativa para a reflexão cultural do ser brasileiro.

Pensando nisso, meu lado historiador convocou um rabisco rápido, atento ao trânsito do saci de ser diabólico, mau, cheirando enxofre, emitindo sons insuportáveis, versus o menininho simpático, engraçado, adocicado, maroto, amiguinho. O que teria acontecido? Perdemos a memória?

Inscrevendo o debate em outra pauta, paralela, vale considerar o atual saci invariavelmente metamorfoseado. Há pistas capazes de considerá-lo originário das matas guarani – entre fronteiras do Brasil e Paraguai – apontado como guardião das florestas; não faltam importações celtas, ibéricas, nórdicas, europeias enfim, que então emprestariam o capuz vermelho e a prática das traquinagens domésticas; a africanização teria se passado desde a presença escrava e a associação com a negritude funciona como marca filtrada do preconceito escravagista.

Outra sinalização importante para a explicação reformulada do nosso saci se apoia no mito do hibridismo cultural brasileiro, condição aliás que tem atravessado nossa história, projetando-nos como harmonizadores de tudo, incruentos, democratas. Esse ponto interessa fundamentalmente para a crítica simplificadora de Lobato como “pré” ou “antimodernista”. Se considerarmos as publicações do “Inquérito sobre o saci”, desde 1917 em jornal e depois em 1918 em livro, temos moldura capaz de implicar Lobato na alma do modernismo e acatá-lo coerente com o “espírito de corpo” que o justificava afinado com as propostas culturais postas em tela. Sob tal mirada, o trabalho com o saci seria fator bastante para explicar a estratégia da devoração que dá sentido ao movimento Antropofágico. O próprio saci, produto de outros sacis, seria resultado devolvido ao Brasil.

Autores como Jesse de Souza têm retomado a oficialidade da história e proposto revisões que, no caso do saci, tornam-se esclarecedoras dos mecanismos que inventam a cultura brasileira como tolerante, exótica, boazinha. Nada, nada disso. A transformação objetificada do saci em mercadoria pedagógica, de preto retinto e agressivo, de figura repulsiva em engraçadinho é uma forma de calibrar, manipulando forças capazes de animar outras visões potentes da representação popular. Convida-se a pensar o uso do saci nas escolas e, por elas, a manipulação cultural feita pelo viés pedagógico.

Dois elementos chamam a atenção na tecitura do perfil do novo saci: a retirada de seu caráter contestador, de resistência e perigo, e a aproximação ingênua de um personagem identificado como produto nacional, esperto, alegre, controlável, ainda que não exatamente humanizado.

Pensemos o(s) saci(s) de Lobato como a chave que abriu esse cofre de possibilidades. Ele também inquieto, soltou seus sacis, e escondeu a chave. Precisamos dela para nos entender.