amour raison d’être

“O amor está no ar”. No ar, cantado, escrito, expresso em conversas, rezas, na imaginação de todo mundo. E haja filmes, álbuns musicais, peças de teatro, óperas, novelas… Até parece decretado que nascemos unicamente para o amor e que, sem ele, não há motivo para seguir em frente. Assim, tudo converge para a certeza de que o amor se tornou natural a ponto de legitimar a uma tradição inventada que funde amar com o existir. Lulu Santos, aliás, sintetizou aberturas dizendo que é “justa toda fora de amor” e Milton Nascimento completou garantindo que “Qualquer maneira de amor vale amar”. Inescapável, né? Temos que amar o próximo, a família, a pessoa certa, a natureza, as pedras, nossa casa, os bichos, as flores…

“Qualquer maneira de amor vale amar”

Manuel Bandeira, no começo do século XX traduziu um soneto da poetiza britânica Elizabeth Barret Browning, que em 1844 cunhou mensagem definidora do sentimento ao pedir ao amado que a amasse “pelo amor somente” e não pelo que ela seria ou poderia ser (“Ama-me pelo por amor do amor, e assim me hás de querer por toda a eternidade”). O fundamental é estar amando, e se amando estivermos o objeto do amor é secundário. Esta, aliás, é a base do amor romântico, nascido no século XII no trágico romance “Tristão e Isolda”. Essa trama, aliás, se formulou como base para todo grande amor “que só é bem grande se for triste”, como queria Vinícius de Morais que, não satisfeito, completava “por isso meu amor não tenha medo de sofrer”. Pronto, sintetizada a fórmula: não há vida sem amor, não há amor sem sofrimento; vivemos para a amar, amamos para sofrer.

Não só de arte e cultura popular dissemina-se o culto ao amor emblemado por Leonardo Souza ao dizer “o rei dos sentimentos chamado Amor, faz escravos a cada minuto. Quem ousar desobedecer às suas leis será punido por um juiz chamado solidão”. Enfim, é amar, amar ou morrer triste sem ele. E tudo se integra no que os franceses extremaram como de amour raison d’être.

Lá atrás, no amanhecer da racionalização, os gregos propuseram sementes que germinaram interpretações sobre o amor. Em particular no ocidente, algumas fórmulas foram assumidas como pressupostos religiosos e em particular a cultura judaico-cristã fez viver o ideal “Ágape”, do amor universal irrestrito. “Deus é amor” está nos Evangelhos. O “amai-vos uns aos outros” virou uma espécie de pressuposto vivencial, passagem para ganhar o céu. Antes os clássicos gregos colocaram premissas fundamentais para a definição do perturbador sentimento. Na mesa as teorias de Platão e Aristóteles. O maior destaque deve ser reconhecido na proposta de Platão que identificou o “Amor Eros”. Reconhecendo o peso das paixões, do erotismo e da beleza humana, cabia reconhecer os impulsos e os desejos na busca de experiências amorosas. Em contraste a esse sentimento avassalador, outra sugestão amorosa decorria do “amor platônico”, aquele dirigido a sociedade sem dependências sentimentais persoalizadas. Na mesma linha do amor humanitário, Aristóteles se destacou com a definição de amor “Philia”, associado a alegria social e a harmonia duradora entre humanos e a natureza.

Philia, significa atração, oposta a fobia, que faz referência ao mal

O alargamento das conquistas e a sequente ordem social universalizante, contudo, demandou organização para as manifestações amorosas e a instituição do casamente funcionou como divisor entre o idealizado para casais e o amor social. Um resumo da história do amor pode ser lido num clássico e polêmico livro escrito pelo suiço Denis Rugemont “História do amor no ocidente”.

O arco percorrido pela tradição amorosa é longo e intrincado, mas chegou aos nossos dias propondo uma questão inescapável: podemos viver sem manifestações amorosas explícitas. O tema, sinceramente, destitui a fatalidade do sentimento como se fosse eterno, inerente à vida. E há grupos que, em diversas linhas, começam propor situações diferentes. Bauman, no comentado “Amor Líquido”, insistia na transitoriedade dos sentimentos no mundo pós-moderno. Vários autores têm tocado no tema do poliamor, da poligamia amorosa, das variações afetivas combinadas e transitórias. Bem complexo o assunto, sabe-se. Nesse emaranhado, chama atenção uma nova corrente que não deixa de lado certa logica: a “desrromantização” dos afetos. Os chamados “arromânticos” não desdenham o amor, mas não o entendem como obrigação vital, ou inscrito na eternidade dos tempos. Pode-se viver sem amor e sem necessidade de declarações públicas disso. A questão que salta leva a suposição dessa forma de vida. Afinal, podemos viver bem sem amar o amor romântico? É possível ser arromântico?