Para Pedro Rubim

Como historiador, faz parte de meu ofício entender a produção cultural em seus espaços e tempos. Chama-se anacronismo a mania simplista de transpor um documento ou produto cultural de um tempo para outro. A veneta das “presentificações” tem produzido absurdos que, para os incautos, repete julgamentos levianos e interpretações convenientes. Faz parte dessas distorções o apagamento do sentido de época ou espírito do tempo. Um pálido exemplo pode ser medido pela consideração do açúcar de cana, antes tido como solução alimentar, depois condenado como veneno. E isso se dá em vários setores da vida como, por exemplo, o cancelamento de sambas que, com a intenção de saudar as mulatas – “o teu cabelo não nega”, “mulata bossa-nova”, “mulata assanhada” – viraram libelos racistas. E na mesma toada se proíbe a pintura de Di Cavalcante e até mesmo as receitas da “cocada preta” estão fadadas a mudar de nome.

Foi pensando nessas “correções” provocadas por leituras distorcidas do “politicamente correto” que tenho filtrado o debate sobre o “homem do campo”. E perfilo discussões que promovam pensar a complexidade do assunto que, afinal, vai além do olhar classista, machista elitista ou misógino. Por lógico, começo por Monteiro Lobato que, retomando antigo debate, fragmentou o discurso estabelecendo o caipira como estratégia argumentativa sobre o todo nacional. E para falar do gentílico brasileiro, ele retraçou um estereótipo amaldiçoado sobre o “nosso matuto”. E poderia datar o início dessa prática pela “Carta dos Leitores” do prestigioso jornal O Estado de São Paulo, ocasião em que Lobato reclamava do homem do campo delegando responsabilidade pelo atraso nacional, em particular pela tradição da queimada das matas. A força do texto elevou o brado lobateano à condição de artigo destacado com o título “Uma velha praga”, estampado no dia 12 de novembro de 1914. Em seguida, um mês depois, era revelado o texto “Urupês” que, além de consagrar o autor, inflava polêmicas intensificadas ao longo de anos seguidos.

Mulatas de Di Cavalcante

“A nossa montanha é vítima de um parasita, um piolho-da-terra”, escreveu prevendo crítica à derrubada de árvores milenares. Pensando nessa passagem eloquente, contrapondo o protótipo do caipira doente e lerdo, perfilado por Lobato, levantava-se um outro saboroso tipo criado por Cornélio Pires que, desde 1910, exaltava o caipira interiorano – processo este coroado por um livro de 1924 “Estrambólicas Aventuras de Joaquim Bentinho, o queima campo”. Inegável o diálogo polarizado, tão inegável quanto o contraste entre os dois personagens. Ao caipira combalido de Lobato, Cornélio Pires apontava outro, vibrante e esperto. A distanciar o pessimismo de um e a euforia de outro restava o tom da abordagem.

Os dois escritores eram representantes da elite paulista, ambos se tornaram autores de sucesso – os mais lidos no tempo – mas separados pelo humor: Lobato melancólico, Cornélio Pires hilário.

O hilário Cornélio Pires

Por lógico não eram os dois os únicos a tocar no tema e em meio a esse paralelo, um novo autor, também interiorano, propunha uma visão intermediária. Cesídio Ambrogi, amigo de Lobato, produziu uma combinação que pode ser medida no poema “Jeca, o filósofo” onde pontifica de maneira conciliadora:

Amiúdam galos. E, de manso, a terra

Desperta. Ruflam asas. Sopra a aragem.

E o sol, que surge por de trás da serra,

Aloira toda a matinal paisagem.

Um cão ladra distante. Longe berra,

Transmalhada, uma cabra na pastagem;

De uma choça a janela se descerra,

A emodulrar do Jeca a triste imagem.

Deslumbrado, entusiasmado da natura,

Exclama ante a paisagem que fulgura.

-“Sim sinhô. Ta fermoso de encanta!”

E, em seguida, tomando a “troxada”:

-“Cum dia ansim só mermo uma caçada…

Inté é pecado a gente trabaiá!”

                  Mestre Cesídio Ambrogi

Interessa assinalar que este soneto foi publicado no livro “As moreninhas”, em 1923, exatamente por Monteiro Lobato. No caso de Cesídio Ambrogi, a letargia do caipira de Lobato é mantida, mas ao mesmo tempo, a sagacidade marota de Cornélio Pires se faz presente, e mais, é elevada à condição de filosofia.

Ocorreu nomear esta breve reflexão Morte e vida do Jeca supondo o título dado por João Cabral ao famoso poema “Morte e vida Severina”, pensado que abordagens sobre o homem do campo também merecem retomadas que impacientem simplificações e que reestabeleçam a instrução do debate que, afinal, é de todos. Dar vida ao tema “caipira” implica propor pensar o caipira hoje no mundo do agronegócio e dos movimentos como o MST. Ou o caipira não existe mais?