Quase sempre falamos do tempo frio ou do calor. Extremar polos é prática usual e simples, ainda que anule mediações vistas como eventos menores. É verdade que cá e lá ouve-se algum comentário sobre as passagens, estações de mudanças do clima. No Brasil então tais observações praticamente não fazem sentido “só temos verão e inverno”, dizem. Concordo que há músicas que celebram outonos e é até fácil listar líricos festejos de primaveras, mas isto corre mais por repertórios poético-românticos que propriamente na prosa ou na prática narrativa cotidiana. Assim, no elenco do dia a dia as mudanças de temperatura servem apenas para lançamentos de lojas, liquidações, ou queima de estoques. Foi pensando nestas circunstâncias que me perguntei: mas, poderia ser de outro jeito? E despertando o ente que se inquieta em mim fui mais objetivo: como vivo o outono?

Foi imediato lembrar de um sermão do Padre Antônio Vieira em que, meditando sobre a relação de Cristo com São João, remete ao instigante debate das “metades que se completam”, referência a duas etapas do ano. Segundo o jesuíta, no calendário religioso duas datas marcariam divisoras do tempo sagrado festivo e do recolhimento: 24 de dezembro, Natal, e, 24 de junho, dia de São João. A liturgia comemorativa dessas “duas partes do mesmo todo”, metades exatas, ainda é cultuada em países de tradição católica acentuada, com é o caso de Portugal – e entre nós do Nordeste. Considerar isto me motivou uma ponderação perversa: subdividir por quatro os dois tempos polarizados em verão e inverno. E novamente me veio a pergunta impertinente: então, qual o sentido das passagens de uma condição à outra?

Padre Antônio Vieira: “duas partes do mesmo todo”

Mais um questionamento me avassalou: a ideia métrica de ¼º, ou seja, da metade da metade. Garoto ainda, na loja de meu pai, ficava encantado quando alguém pedia a medição do tecido citando a tal quarta parte do metro. Isso me encantava, ou melhor, me fascina até hoje a ponto de permitir relacionar o tempo, a natureza, com os sentimentos pessoais vistos em fases do ano. Falo especificamente do sentido do outono em mim, deste quarto de ano que provoca a mudança de cores nas folhas, quedas, e que aliviando o calor nos ameaça com o frio. Teria mesmo isso influência nos comportamentos? Euforia no verão, tristezas no inverno? E os entremeios?

Foi um passo pensar as velhíssimas lições sobre “os quatro humores” atribuída por Galeno a Hipócrates de Cós no livro “Da Natureza do Homem”. Nem vou discutir se era Pólibo o autor, apenas ressalto a sugestão explicativa dos “quatro fluidos naturais no comportamento humano: sangue, fleuma, bile amarela e bile negra”. Segundo tal teoria nossos temperamentos dependem diretamente das estações do ano, e variam de acordo com o clima. Desdobrando essa teoria, a fleuma, fria e úmida, predomina no inverno; sangue, quente e úmido, na primavera; bile amarela, quente e seca, no verão; e bile negra, fria e seca, no outono. Por lógico, tais pressupostos ficaram para trás, mas não resisto uma espécie de saudade explicativa que me faz pensar na minha postura outonal.

Decorremos um quarto do ano e isso alça protagonismo argumentativo quando retomamos as promessas da virada de um ano para o outro. Sim, todos fizemos planos para o “ano que nascia”. É certo que o momento de prestação de conta deve ser conferido no final do ciclo, mas que tal um reajuste agora, na metade da metade? Supúnhamos mudar alguns hábitos, implementar atitudes corretivas de erros, inovar, aprender, corrigir… Conseguimos? Ou melhor, começamos? Se sim, como projetar a continuidade; se não como recalibrar a promessa?

Decorridos mais de 120 dias do ano, restam ainda três quartos, há tempo para tomar fôlego e a impressão outonal pode servir de aviso. O recolhimento que aponta para dias ainda mais gélidos pode servir de ponte para mensurar os projetos. É aí que emerge a noção de passagem como momento fértil, de consciência da mudança.

Em tempos de valorização da natureza, em um momento em que somos convidados a reaprender respeitar a voz das matas, dos pássaros, das águas e até das pedras, bem que poderíamos fazer um mergulho interior e perguntar o sentido do outono, deste outono, em nossos projetos pessoais. E estender isso para o campo social, aliás, qual a passagem sugerida neste outono para o inverno político que certamente virá? E que virá antes da próxima primavera.