“Aprendi que a finitude me deu mais um aviso”

Como em várias famílias, o câncer ronda a minha e de quando em vez faz suas aparições, sempre consequentes. Aconteceu outra vez e agora comigo. Faz pouco tempo, pouco mais de 7 meses, que recebi a notícia. E foi surpreendente posto sempre manter meus exames preventivos em dia. Durante a pandemia, contudo, em 2021 e 22, deixei de visitar meu urologista e isso foi fatal. Silenciosa, a doença não deu avisos e na surdina ganhou força provocando uma espécie de culpa por não ter retomado antes a cadência de exames gerais.

Corria o mês de março, tempo de meu aniversário, e antes, para mim mesmo, determinei que não mudaria de década sem antes ter certeza de que tudo caminhava bem. Marquei uma consulta sem preocupação alguma e fui sozinho ao médico. Logo no toque, pelo silêncio do sempre falante especialista notei algo estranho. Acertei. Sem muito pestanejar, quase espontaneamente, o jovem doutor foi logo dizendo “professor, acho que não tenho boas notícias” e daí por diante declinou uma série de procedimentos a serem feitos “todos com a máxima urgência”.

Como reagi? Responder a esta questão implica dizer que atravesso uma quadra de notícias típicas de quem completou 80 anos. Muitos queridos têm partido e a noção de finitude tem composto uma catilinária de despedidas que afetam a expectativa de longevidade. Fiquei, no entanto, tranquilo, mas tranquilo com uma naturalidade que não imaginava ser minha. Logicamente, despertei a certeza de uma segunda opinião, ainda que os exames de PSA logo denunciassem a premência do caso. Continuei calmo e assim dei a notícia aos filhos que imediatamente se mobilizaram frente as autorizações do plano de saúde e agendamento dos procedimentos prévios à cirurgia.

Mestre Sebe com os filhos em viagem a Portugal

Há 5 anos, passei por uma situação também alarmante frente a necessidade de colocação de 4 stents. Editou-se a surpresa da condição clínica e junto a placidez na aceitação cirúrgica. De algum lugar de meu passado brotou a memória atenta a respostas de certas perguntas fatais. De jeito sutil e manso, busquei responder ao apelo drummoninano “E agora José (Carlos)”. E em meu interior ecoou o mesmo brado de antes “vamos fazer o que tem que ser feito e planejar o tempo que resta”. Lembrei-me que na situação cardíaca havia dito aos cirurgiões que seria interessante eles serem cuidadosos, pois ainda me faltava escrever alguns livros, já em andamento. De maneira surpreendente, lembrei-me que mesmo tendo produzido outros materiais, ainda me faltavam os mesmos livros de antes.

Pensei muito na família. Muito. Meus filhos receberam a notícia sem alarde, ainda que preocupados. Tendo a mãe convivido com câncer de mama, o acometimento paterno reavivou a lembrança de cerca de 10 anos de sofrimento familiar. E assim entram em cena certos tiques nervosos de nossa cultura. Em primeiro lugar, o peso da palavra câncer como estigma fatal, e depois a impropriedade do trato das pessoas que erram mesmo com vontade de acertar usando e abusando de indicações de medicamentos alternativos, de médicos milagrosos e casos de curas legendárias. Confesso que é difícil demais ver nossos dramas nos olhos alheios. Do mesmo modo, doía acatar o “você vai sair desta” ou “vai tirar de letra” ou “ah, câncer de próstata, tirou está livre”.

Registro do lançamento do livro com 80 crônicas com referências a Taubaté

Logo aprendi que não é bem assim e que muito depende de rigoroso acompanhamento, de medicação medida e regime. E paciência. Constatei que cada caso é um caso e que mais que cuidados alheios, o nosso próprio trato é o grande comandante. Juntando tais condições, para realmente me ajudar resolvi duas coisas: faria uma grande festa e sem revelar nada aos participantes, convidaria familiares, amigos variados, ex-alunos e pessoas queridas. Foi fácil arranjar pretexto: escolhi 80 crônicas de um acervo de mais de 900 e com a ajuda de um editor querido fiz um livro lançado por ocasião de meu aniversário. Desdobramento disto, passada a primeira fase do tratamento, livre de sondas e habituado aos efeitos colaterais de medicamentos, convoquei meus três filhos e juntos empreendemos uma bela viagem onde nos refizemos enquanto conjunto familiar. Foi emocionante, juro! Rimos, recordamos, repassamos perrengues comuns e nos saudamos pela vida.

Aprendi que a finitude me deu mais um aviso. Agora, em meio a retomada do tempo restante, devo dizer que a felicidade se presentifica no abrir dos olhos a cada manhã, na alegria consciente de meus afazeres, em leituras e escritas na medida do prazer. Como um GPS amoroso, aprendi a recalcular o trajeto e sem amarras aproveitar o bilhete de vida passando a limpo as imperfeições e rascunhando o futuro, tudo sem medo de ser feliz e me preparando para um final coerente com o enredo vivido.