O desconcertante gol de Richarlison contra a Sérvia já virou obre de arte pelo aquarelista cearense Francisco Morrerira

Pois é, juntamente com a caipirinha e a feijoada, o futebol, o samba e a capoeira se formulam como expressões da cultura brasileira. Os dois primeiros se ligam ao paladar e os três últimos aos movimentos das pernas, a partir dos pés. É claro que nesses casos, os braços, a cabeça e detalhes dos corpos como ombros e mãos completam coreografias apropriadas.

O uso das pernas é marca nacional. Todos conhecem por exemplo o clássico de Dorival Caymmi dizendo que ”quem não gosta de samba, bom sujeito não é, é ruim da cabeça ou doente do pé”. E nem é só no samba que se exalta a perna. Contar que alguém é ”pé de valsa” ou sabe ”arrastar o pé”, equivale a elogio em qualquer ritmo. De verdade, porém, em termos musicais os  “requebros” ganham graça a ponto de Chico Buarque, no ”Morena de Angola”, duvidar se é o guiso que mexe com a musa,  ou ela que dá vida ao chocalho. É então o” samba no pé” que garante prestigio aos passistas – e que palavra eloquente essa ”passista”.

Capoeira Regional é mais acrobática

Há três matrizes principais de capoeira: ”Angola”, ”Regional” e ”Contemporânea”. A primeira, remete a movimentos que imitam os animais e por isto é mais difícil e lenta. A ”Regional”, criada por Mestre Bimba, é muito mais acrobática, demanda uso rápido das pernas tornando as ”gingas” tão essenciais que dão nome aos movimentos. A “Contemporânea”, combinação de ambas, é mais livre, mais próxima do espetáculo público ou das academias de ginástica.

De verdade, porém, é no futebol que as pernas regem. O uso das mãos – apenas permitidas aos goleiros – é passível de falta e o “jogo aéreo” não tem valor além de estratégias esporádicas. O que vale mesmo é a ”bola no pé, o “drible” que leva o torcedor ao delírio. Ainda que recentemente o chamado “futebol de resultado” tenha sido supervalorizado, o anterior conceito de “futebol arte” nos caracteriza, e isso interessa como metáfora do que somos. Muitos especialistas têm proposto que o futebol da atualidade deve buscar a verticalidade, ou seja, ir pra frente, atingir o endereço do gol, isso enquanto o “arte” busca avanços mais manhosos que, sem perder o gol, faz questão de “enganar” o adversário com passes desconcertantes – certamente, o maior representante dessa modalidade foi Mané Garrincha e naquele tempo o termo “artilheiro” era menos valorizado. O incrível Pelé marca a transição para o “futebol resultado” que tem na figura de Ronaldo Fenômeno um bom exemplo combinado.

Garrincha encantou o mundo

Considerando esses pressupostos, vivemos no presente alguns dilemas, pois somos a única Seleção do mundo a buscar o hexacampeonato. Ainda que tenhamos padecido o humilhante 7X1 contra a Alemanha na semifinal de 2014, detemos o reconhecimento mundial pelo melhor futebol do planeta. Como responsabilidade, em termos culturais, se nos apresenta um dilema que permite questionar o papel do Brasil no mundo globalizado. Valendo-me da linha divisória entre o “futebol arte” e o “de resultados”, me pergunto se cumpriremos nossa vocação, à la Garrincha ou seguiremos as regras desafiantes de chegar lá a qualquer custo, principalmente a desobediência aos padrões exóticos à nossa tradição. Afinal, ganhar é o que interessa? Importa com que estilo? Ninguém se esquece do trauma de 1950 e nem do “azar” de 1982 quando, mesmo tendo excelente Seleção, voltamos logo para a casa. De que adiantaria a ”arte”, perguntava-se…

Pelé seria a transição para o futebol de resultado?

De certa forma, essas observações podem ser consideradas tolas. A globalização implica competição nos moldes do capitalismo avançado, com disputas que apenas valorizam as vitórias. É exatamente neste ponto que volto ao tema do uso das pernas no esporte bretão. Tomara que sejamos capazes de juntar as duas soluções, “arte” e “resultado”, e, sem perder o nosso jeito, trazer a taça para a casa, driblando os 2o anos sem brilho.

Novos tempos: seria um bom recomeço não “meter os pés pelas mãos”, nem na política e nem no futebol. Torço pela vitória do Brasil, vibro com a possibilidade de mostrar que entramos em nova era de diálogo entre o tradicional e o novo, entre a “arte” e o “resultado”. E temos motivos em todos os campos para pensar em recuperar o prestígio perdido. Que a almejada vitória neste 2022 seja nosso gol para o que há de vir. Torçamos juntos…

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NR: Escrito antes da vitória sobre a Sérvia e o gol antológico de Richarlison