Não; a palavra envelhecente não existe, mas se Guimarães que também era Rosa a tivesse proferido, certamente a sujeitaria na condição de advérbio. E diverso “de modo”, “de lugar”, ou “intensidade”. Seria “advérbio de tempo”, de passagens que modificam não só a ação do verbo, mas mutações biológicas. A meditação sobre o andamento bio-existencial, por sua vez, permite acompanhamento musical e abre caminho para um cancioneiro lírico, algo próximo da sagração da vida como se a compulsão da finitude coroasse nossas trajetórias.

Da prosa à poesia, da poesia à música, Caetano Veloso reponta dignificando a discussão sobre o envelhecer lembrando, porém, que há um Caetano que concorre com outro Caetano. Explico-me: tem o compositor e intérprete das modinhas amorosas, e tem outro desconcertante, filósofo recôndito, timoneiro de embarcações arriscadas. E foi o segundo que musicou “O homem velho”, pequeno tesouro asilado entre tantos versos carentes de destaques. Considerando a vida, e nela as fases experimentadas pelos nossos corpos, Caetano vitoriou “o homem velho deixa a vida e morte para trás/ Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais/ O grande espelho que é o mundo ousaria refletir os seus sinais/ O homem velho é o rei dos animais”.

Rei dos animais”, nossa! Afirmação potente, solene, bonita, né? Então, assumindo a majestade que me cabe, avalio a extensão de minha experiência para responder uma única pergunta: que rei sou eu? Assim, do alto de mim mesmo, me dou a vislumbrar um trajeto alongado em meandros, atalhos por vezes sombreados e, por incrível que pareça, diviso até alguns campos floridos, exuberantes! Dia desses, ouvindo um programa na TV, o âncora perguntava aos convidados “o que gostaria que fosse escrito em sua lápide” e eu, do meu melhor soturno, formulei uma resposta “morri, estou bem, mas não faria tudo do mesmo jeito”. Grato, tenho repetido que minha trajetória produziu o que fui/sou, mas poderia ter sido diferente. Melhor? Despertei roteiros percorridos em busca dos momentos capitais que me qualificariam rei dos animais.

E claro que o peso dos anos, oito décadas somadas, foi o primeiro ponto ponderado. Tratei mal meu corpo, morada da minha vida: ainda que não tenha me tornado fumante e nem abusado do álcool ou de drogas, não fui adequado nas escolhas alimentares. Até tentei, mas a rotina da vida me fez consumidor de alternativas tolas: calorias em excesso, corantes, aditivos, ultraprocessados, refrigerantes… Por força da profissão nunca me dediquei aos exercícios físicos e na ausência dessas práticas perdi massa muscular, ganhei peso e agora dependente de articulações mal-humoradas. É verdade que em troca me tornei profissional atento, cumpridor de obrigações protocolares, pesquisador produtivo, mas exagerei no trabalho; tornei-me íntimo de serões. Mas haveria meio termo? E o que isto tem a ver com meu reinado? E novamente me volta à cabeça o mesmo “segundo” Caetano cobrando juízo na “Oração ao tempo” e até ouço “és um senhor tão bonito/ Quanto a cara do meu filho/ Tempo, tempo, tempo, tempo/ Vou te fazer um pedido/ Tempo, tempo, tempo, tempo… Entro em um acordo contigo/ Tempo, tempo, tempo, tempo”. A palavra “acordo” acendeu meus olhos para um acerto de contas com minha essência.

“Falta um pouco para em sentir o rei dos animais”

Dei água à nau de meu pretérito imperfeito e destilei os momentos em que me senti envelhecendo. Devo antes dizer que o antigo que sou não demorou a ser reconhecido aos olhos alheios. Eu, pelo contrário, apenas notei quando entrando em vagão de metrô tipos se levantavam para que eu me sentasse. Em outra oportunidade atinei quando afetivamente as pessoas começaram a se referir a mim como “senhorzinho”, “vovozinho”, “tiozinho”, tudo no diminutivo. Sabe aquela história do lugar na fila do banco, da gratuidade nos transportes?…

Se pudesse refazer trilhas, teria aproveitado melhor o grande amor que se foi tão cedo, festado mais os filhos nos rituais de passagens, agradecido com abraços e risadas aos meus pais e irmãos e seria ainda mais intenso com tantos bons amigos. Pois é, tudo isso ladainhado convoca retomadas do sábio Caetano. Reconheço-me ainda “envelhecente”, resta-me um trecho de estrada a seguir, e logro desempenhar o anunciado contido em versos da canção: “eu vejo o homem velho rindo numa curva do caminho de Hebron/ E ao seu olhar tudo que é cor muda de tom”. Ainda não cheguei lá, como biblicamente Abrahão deixou Hebron em busca de outro arremate. Segundo Caetano, percebo que ainda resta um pouco de estrada para realmente me sentir rei dos animais, e assim saúdo o advérbio inventado e, envelhecentemente, garanto a coroação que me justificaria como rei dos animais.