Brasil veta termo “gênero” em resoluções da ONU e cria mal-estar

Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, se reúne nesta semana para tratar de crimes e violações. Arábia Saudita apoiou a nova posição do governo brasileiro. Mas aliados de Bolsonaro, como Israel e Chile, se recusaram a apoiar o país. França, escandinavos, canadenses e outros europeus insistem que o termo não pode ser eliminado.

Num ato que deixou delegações estrangeiras perplexas, diplomatas brasileiros começaram a implementar nesta quinta-feira instruções do Itamaraty de vetar qualquer referência ao termo “gênero” em resoluções da ONU. Os documentos serão colocados à votação em julho. Mas já começaram a ser alvo de reuniões diplomáticas e o Brasil promete agir em todos eles.

Numa reunião para negociar uma das resoluções em Genebra, a nova posição do Brasil abriu um debate inédito com europeus, que insistiram que não iriam retirar o termo “gênero” do texto. A posição do chanceler Ernesto Araújo, ironicamente, foi apoiada por governos como o da Rússia, Paquistão e da Arábia Saudita, acusado por ongs e mesmo por governos ocidentais por seu tratamento às mulheres.

Enquanto o Brasil falava, delegações estrangeiras literalmente abriam a boca de surpresa, se olhavam de forma assustada e combinavam reações imediatas, enquanto outros suspiravam para lamentar a nova posição nacional.

Em nenhum dos encontros, porém, a embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, esteve presente e enviou seus secretários e representantes. Ela, no mesmo dia, acompanhava uma visita do ministro de Ciência. No total, porém, mais de 14 referências ao termo “gênero” foram vetadas durante os encontros pelo governo brasileiro até agora. O número deve crescer, já que nem todos os trechos ainda foram alvo de negociações.

Maria Nazareth Farani Azevedo, Ambassador and Permanent Representative of Brazil addresses during the Panel discussion on the issue of discriminatory laws and practices and acts of violence against individuals based on their sexual orientation and gender identity, 19th Human Rights Council. Room XX, Palais des Nations, Geneva. Wednesday 7 March 2012. Photo by Violaine Martin

Maria Nazareth Azevedo, embaixadora na ONU, nem apareceu

A primeira reunião desta quinta-feira havia sido convocada pelas delegações da Áustria, Honduras e Uganda. Na agenda, estava a resolução para tratar dos direitos humanos de pessoas deslocadas, por conta de conflitos armados ou mesmo mudanças climáticas. O temor é de que, entre essas populações, as mulheres sejam as mais afetadas.

Mas foi a posição do governo brasileiro que chamou a atenção daqueles na sala. Ao tomar a palavra, os representantes do Itamaraty indicaram que querem que o termo “gênero” fosse trocado por “igualdade entre homens e mulheres”.

Na visão do governo brasileiro, gênero é uma construção social e o que deve prevalecer é a realidade biológica.

A intervenção do Brasil abriu uma discussão. Os governos da Noruega, Suíça, França, Austrália e Canadá rapidamente pediram a palavra para insistir que não aceitariam a retirada da frase.

O mesmo padrão de debates ocorreu instantes depois, ao se debater mais um artigo da resolução. Os autores da proposta indicaram ao Brasil que aquela linguagem era a mesma que existia nas resoluções aprovadas por consenso nos anos anteriores e que se sentiriam “desconfortáveis” em mudar.

Enquanto o debate continuava, os vetos impostos pelo Brasil se ampliavam. Num outro trecho, o governo de Jair Bolsonaro pediu que o termo “violência com base em gênero” fosse trocado por “violência sexual”. Dinamarca, Noruega, Guatemala, França e Panamá rejeitaram a ideia brasileira.

Saúde

A onda de vetos do Brasil não deixava passar nenhuma frase do texto em que os termos de desagrado do Itamaraty fossem identificados. Numa outra parte do projeto de resolução, o Brasil pediu a exclusão das frases “desigualdades com base em gênero” e mesmo “serviços de saúde sexual e reprodutivo”.

Mais uma vez, países ocidentais defenderam a manutenção da linguagem do texto como está. Quem apoiou o Brasil, porém, foi o governo saudita.

Horas depois, numa outra reunião, o governo brasileiro voltou a se pronunciar para pedir que o termo “gênero” fosse retirado de uma outra resolução sobre o direito à educação. Uma vez mais, os países ocidentais atacaram a proposta do Itamaraty.

Contra a discriminação, mas sem gênero

No mesmo dia, em outra sala da ONU, delegações se reuniam para debater uma resolução sobre a eliminação de descriminação contra mulher, proposta pelo México. Tradicionalmente, esse é um texto que anualmente é aprovado por consenso.

Uma vez mais, o Brasil inicia a desmontar o texto, vetando todos os trechos que a palavra “gênero” era mencionada. Numa das partes que gerou risos entre os demais delegados, a diplomacia brasileira solicitou o veto à frase “treinamento com base em gênero”. Em seu lugar, sugeriu a frase: “o treinamento que leve em conta temas de mulheres”.

Chanceler

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Imediatamente, governos de diferentes regiões atacaram a postura do Brasil. Para o Uruguai, o que o Brasil quer eliminar é o “centro da resolução”. A mesma avaliação feita pela UE e Austrália, enquanto a Islândia insistiu em manter o texto como está.

O Itamaraty ainda insistiu em excluir parágrafos inteiros que faziam referência a uma possibilidade de abolir a criminalização do aborto, além de outro que apontam como existia uma suposta tentativa de “impôr padrões sociais e culturais”. Num outro trecho, o governo solicitou a exclusão de um parágrafo inteiro que daria a sensação de que o aborto poderia ser algo positivo. Chile, Georgia e Israel pediram a manutenção da linguagem.

Em outro trecho, a resolução indicava a necessidade de que governos tomassem medidas para impedir que barreiras criadas por religiões tivessem um impacto negativo sobre as mulheres. O Brasil também foi contra, alegando que o texto daria brecha para restrições à liberdade de religião. Para completar, ainda pediam que entidades religiosas fossem incluídas como atores sociais.

Nesse caso, Bahrein e Paquistão apoiaram o Brasil.

Ao longo da reunião, as falas do Itamaraty eram imediatamente contestadas por diferentes países, alguns deles aliados de Bolsonaro. Chile e Israel foram dois dos que tomaram a palavra em diferentes momentos para rejeitar as propostas brasileiras. Os governos da Argentina e Uruguai não pouparam suas críticas.

O veto ocorreu um dia depois O veto ocorreu um dia depois que o jornal Folha de S. Paulo também revelou que diplomatas brasileiros receberam nas últimas semanas instruções do Itamaraty para que, em negociações em foros multilaterais, reiterem “o entendimento do governo brasileiro de que a palavra gênero significa o sexo biológico: feminino ou masculino”.

O debate vem em meio a uma ofensiva do atual governo para desfazer algumas das posições tradicionalmente tomadas pelo Brasil nos últimos 18 anos. Uma das principais delas se refere ao termo gênero, considerado dentro de parte do governo como uma “construção social”.

Mas a transformação da posição do Brasil nos organismos internacionais vai além. Se por alguns meses um debate claro foi travado dentro do governo brasileiro sobre como se comportar em votos nas entidades, a consolidação da posição mais conservadora passou a vigorar nas últimas semanas. E foi amplamente notada por governos estrangeiros e ongs.