Em tarde agradável, num quiosque na praia, conversava com poucos amigos quando passou uma esfuziante travesti que, alheia ao grupo, sentou-se na mesa ao lado. Exagerada em seus apetrechos, não havia como ignorar a figura excessiva em todos os detalhes. O tamanho dos pés, das mãos, a musculatura geral e o gogó não deixavam dúvidas, ainda que os trejeitos, os peitos mal sustentados por um decote ousado, e principalmente a vasta peruca loira convidasse supor o feminino. Nós, discretos senhores – discretíssimos representantes da terceira idade – vimo-nos perturbados. A conversa que fluía sobre temas do cotidiano de repente experimentou o silêncio. Para felicidade geral da turma, depois de atender a um chamado pelo celular, a “moça” levantou-se e partiu. Ficamos sem ação por alguns minutos e no vazio, titubeamos.

Estranhíssimo como certas situações e temas são interditos em nossa cultura sempre tão seletiva, moralista e satisfeita em meandros. Estava claro que precisaríamos abordar a questão que nos desconsertara, mas faltava dicionário. Em minha cabeça uma pequena coleção de perguntas desordenadas se articulava, contudo sem força de enunciação. Respirei fundo e finalmente tomei coragem para libertar a primeira “viram? Que acham”? Pueril, né, mas era a entrada possível. A calada foi substituída por sussurros do tipo “pois, é”, “sei lá”, “credo”, “é o fim dos tempos”. Resolvi verticalizar a conversa e, corajoso, investi “notaram como não temos argumentos para comentar certas coisas, simplesmente murmuramos bobagens sem consistência… somos mesmo muito preconceituosos”. Peguei pesado, né?!… e até tive algumas reações.

Senhores respeitáveis futricam e trocam figurinhas nos botecos da vida

Um dos mais falantes exclamou “sempre foi assim, agora está mais escancarado”. O moralista soltou a indignação reprimida “é uma vergonha, eles (sic) não têm mais noção de lugar, estão em toda parte e não respeitam ninguém”. Outro completou “antes era mais no carnaval”. Sabe, fui me enquizilando com a latência patriarcal e machista de minha geração incapaz de aceitar a diferença projetada na dinâmica do tempo. Por fim, alguém soltou a frase que me valeu como senha “são uns marginais que precisam do alfabeto todo para se reconhecerem: LGBTQUIA +… antes veado ou bicha e bastava…”. Mantendo minha fleugma rebati “ora, o que aprendemos com o tempo? Será que nossa geração não tem nada a dizer sobre direitos humanos; não tem o dever de mostrar que desde jovens lutamos pela democracia e pelo convívio com o diferente”? E um tanto irritado arrematei “falta História nesta história”. Para aliviar, decorri um pouco sobre papeis dos eunucos desde o século IV; dos castrados que tiveram destaques até o início do século XX, inclusive como cantores profissionais. Dissertei brevemente sobre sexualidade na Grécia clássica e no Império Romano; salientei a invenção da moral sexista moldada pela Inquisição que discriminava o homossexualismo pelo “desperdício de esperma que impedia a reprodução”. Tudo em vão…

Inconformado, levei para casa a essência daquele episódio e resolvi me indagar dos intervenientes silenciadores de minha geração: será que o preconceito tem nuanças de idade, me perguntava, e dei corda à questão sobre a transversal da (in)tolerância: será que qualquer geração padece a mesma fundamentação frente às discriminações? Por lógico, evoquei a masculinidade discursiva como denominador universal, mas me detive relativizando nossas posturas frente outras realidades e vi que, mesmo com contradições, alhures estão muito mais soltos. Aqui como lá, a coleção de leis favoráveis às orientações sexuais livres atua de maneira a proteger os direitos privados, individuais. É também verdade que nossas regras legais têm avanços que, contudo, não chegam à prática cultural. Resolvi por lupa sobre o caso específico de meus coetâneos e me inquiri sobre as lições do passado. Fundamentei minha aflição contando com marcadores cruciais nos cortes de posicionamentos estruturais: a transposição do pós-guerra; o advento dos anos dourados na era JK; a Abertura Política com a consequente superação da ditadura que nos sufocou por 21 anos; a longa crítica permitida pela contracultura; os anos de renovação depois da era Collor… e perplexo reafirmei minha dúvida sobre o papel da experiência geracional na superação de entraves socioculturais. Será que, afinal, não aprendemos nada? Qual o legado de minha geração?

Rogéria era conhecido como travesti da família brasileira

Em 1973, Raul Seixas nos anos de chumbo lançava uma canção incômoda intitulada “Mosca na sopa”. Com ímpeto sutil me vejo autorizado a recuperar a sutileza da mensagem que indica a função da mosca perturbadora. Gosto muito do final que provoca “e não adianta/ vir me dedetizar/ pois nem o DDT/ pode assim me exterminar/ porque você mata uma/ e vem outra em seu lugar”. E viva a travesti que trouxe o maluco beleza de volta e permitiu por a mosca na sopa dos velhos acomodados…